sábado, 19 de novembro de 2022

Angola | PÉROLAS CONTRA PORCOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A crónica é um a paixão que me arrebata desde o primeiro dia que entrei numa Redacção. Hoje procuro crónicas nas páginas da Imprensa e não encontro nada.  Grave. Mais grave ainda é não encontrar notícias, reportagens e entrevistas que não tenham a marca do frete rasteiro. A queda do Jornalismo levou-me a criar uma pasta no meu computador onde guardo as crónicas que me surpreendem, as reportagens empolgantes, as entrevistas bem conduzidas onde os entrevistados têm alguma coisa para dizer. Chamei a esse cofre de preciosidades jornalísticas “Pérolas Contra os Porcos”. Estou cansado de dar pérolas a porcos. Porque os javardos são cada vez mais e tenho cada vez menos pérolas. 

Entre esse material estão duas crónicas de Jaime Azulay e um texto sobre o Jornalismo de Guerra. Hoje mando-vos uma dessas crónicas. Este introito é fundamental porque acaba de me chegar às mãos um texto do meu amigo e camarada de profissão que me deixou perplexo. O tema é o comandante Kassanjy, que morreu em combate no Morro do Chingo, vítima de um ataque de artilharia dos invasores sul-africanos acobertados por renegados da UNITA.

Jaime Azulay resolveu chamar “mito” ao comandante Kassanjy e especular sobre a sua morte. Publicou no Club K, portal dos karkamanos e da UNITA (além de outros donos avulsos), um texto que oscila entre a especulação e a intriga. Que lástima. Segue o mesmo caminho dos cultores do banditismo jornalístico. Escreve coisas como esta: “Sustentou-se que Kassanji teria sido submetido a um julgamento marcial clandestino no qual se decidiu pelo seu fuzilamento”. Mas teve um rebate de consciência profissional e confessa: “No depoimento que me enviou, o general Mbeto Traça, que era na altura o delegado do MPLA no Kwanza Sul desmente categoricamente tal hipótese e relata como sucederam os eventos”.

O meu amigo e camarada de profissão dá um salto mortal na intriga e escreve: “Kassanjy tinha completado 26 anos quando morreu e transformou-se num verdadeiro mito. Nasceu no Andulo, no centro de Angola e era primo de pessoas que se destacaram no exército criado pela UNITA, as FALA (Forças Armadas de Libertação de Angola), estou a falar do lendário general Arlindo Chenda Pena (Ben-Ben) e por via disso tinha laços familiares com o Dr. Savimbi, então líder da UNITA”.

O “lendário” general Ben Ben foi aquele que na sequência da derrota eleitoral da UNITA soltou os seus “comandos”, escondidos numa fazenda perto de Viana, nas ruas de Luanda. Levavam à frente metralhadoras de fita. Uma disparava para o lado esquerdo, a outra para o direito. Varreram a capital com ferro e fogo. Mataram milhares de luandenses, nas suas casas, nos seus quintais, nas ruas. Quando viu que estava tudo perdido, vestiu-se à civil, desceu as barrocas até ao porto de Luanda e lá apanhou uma viatura civil que o levou aos acantonamentos da UNITA e daí fugiu de Angola. Morreu numa clínica da África do Sul, como general das Forças Armadas Angolanas. Grande lendário. 

Jaime Azulay insinua que a sua morte pode estar ligada às suas origens familiares. Mas depois tem um rebate de consciência profissional e revela que em Benguela, há um Liceu Comandante Kassanjy e uma Avenida Comandante Kassanjy, a mais importante da cidade. Ninguém homenageia um traidor. Lamentavelmente, o meu amigo e camarada de profissão compara-o aos golpistas de 27 de Maio de 1977. E quer as ossadas do comandante Kassanjy. Uma “investigação forense”. Um funeral de Estado. Dinheiro para a família. 

Qual família? Antes da sua morte, falei com ele algumas vezes. Uma delas estava presente o seu amigo Moura, do Andulo, director de um banco em Luanda. O bancário tinha casado com uma menina do Bailundo e já tinham dois filhos. Kassanjy revelou que tinha optado por ser celibatário. Nem mulher nem filhos. Não percebi esta referência à sua família. 

Quanto aos funerais de Estado, nenhum comandante, nenhum combatente teve esse privilégio naquela época. O comandante Valódia morreu junto à sede central das FNLA em Luanda. Foi enterrado sem cortejos fúnebres. O Comandante Nelito Soares foi assassinado por “comandos” portugueses na Vila Alice em Setembro de 1974. A família enterrou-o. O MPLA e as FAPLA não organizaram nenhuma cerimónia fúnebre. O comandante Gika morreu e não houve funerais de Estado. Foi enterrado pelos camaradas. Faltas de respeito? Nem pensar. Na época estávamos empenhados em conduzir Angola à Indpendência Nacional. Única forma de cuidarmos bem dos vivos. Nada de intrigas e especulações.

Jaime Azuilay era director da Delegação Provincial de Benguela da Empresa Edições Novembro quando, em Novembro de 2014, publiquei uma reportagem no Jornal de Angola, sobre a Grande Batalha do Ebo. Falei com muita gente e também com o general António Faceira (Defunto), que na época pertencia ao comando das FAPLA na Frente Centro. Pelos vistos o meu amigo não leu. 

Vou reproduzir aqui uma parte sem antes manifestar o meu espanto por não incluir no seu texto, o benguelense Artur Pestana (Pepetela) entre os dirigentes do MPLA no então distrito e na frente. Aí vai o excerto:

“As tropas invasoras sul-africanas tentavam desesperadamente chegar a Luanda, porque o alto comando de Pretória já sabia que a invasão a Norte tinha sido um fracasso e os mercenários associados às tropas zairenses abandonavam Angola vergados ao peso da derrota. As FAPLA bateram-se heroicamente para impedir o avanço do inimigo. O general Faceira “Defunto” viveu esses dias na linha da frente e partilhou as suas memórias com o Jornal de Angola. 
A coluna invasora sul-africana avançou rapidamente desde a fronteira de Santa Clara, lançando o caos. O comando da Frente Sul ficou desfeito e deu-se a debandada geral. O comandante Monti, responsável da Frente Centro,  agrupou o que restava das forças em Catengue e tentou travar o avanço das tropas inimigas. Mas os ataques de artilharia e os tanques causaram grandes estragos às FAPLA. A partir desse dia, ainda antes da Independência Nacional, as forças angolanas foram recuando. Benguela e Lobito caíram. Depois foi o Sumbe. O comandante Kassanji morre em combate no morro do Chingo.
O general Faceira recorda hoje o que aconteceu: “Depois da queda do Lobito ficámos no Quicombo mas quando o inimigo avançou tivemos de abandonar essa posição. No Sumbe também havia poucas possibilidades de defesa. Montámos postos de controlo para não deixar passar ninguém com mais de 18 anos. Não tínhamos combatentes. Foi neste quadro que o comandante Kassanji juntou pouco mais de uma centena de homens e foi enfrentar os sul-africanos no morro do Chingo. Ele morreu por sentimento. Mas os militares não podem pensar com o coração. Aquela acção estava votada ao fracasso. Infelizmente, foi isso que aconteceu”.

Ler também em Página Global: 

Angola | Morro do Sombreiro - O Camião Dombolo Zangado

Pelos vistos, o depoimento do general Mbeto Traça não chega. E esta declaração do general Faceira (Defunto) é insuficiente para acabar com  a especulação e a intriga. Lamentável. Leiam agora o texto integral da minha reportagem.

Primeira Grande Vitória Militar 

Batalha do Ebo foi travada a 23 de Novembro 12 dias após a Independência 

As tropas invasoras sul-africanas tentavam desesperadamente chegar a Luanda, porque o alto comando de Pretória já sabia que a invasão a Norte tinha sido um fracasso e os mercenários associados às tropas zairenses abandonavam Angola vergados ao peso da derrota. As FAPLA bateram-se heroicamente para impedir o avanço do inimigo. O general Faceira “Defunto” viveu esses dias na linha da frente e partilhou as suas memórias com o Jornal de Angola. 
A coluna invasora sul-africana avançou rapidamente desde a fronteira de Santa Clara, lançando o caos. O comando da Frente Sul ficou desfeito e deu-se a debandada geral. O comandante Monti agrupou o que restava das forças em Catengue e tentou travar o avanço das tropas inimigas. Mas os ataques de artilharia e os tanques causaram grandes estragos às FAPLA. A partir desse dia, ainda antes da Independência Nacional, as forças angolanas foram recuando. Benguela e Lobito caíram. Depois foi o Sumbe. O comandante Kassanji morre em combate no morro do Chingo.
O general Faceira recorda hoje o que aconteceu: “depois da queda do Lobito ficámos no Quicombo mas quando o inimigo avançou tivemos de abandonar essa posição. No Sumbe também havia poucas possibilidades de defesa. A debandada era geral. Montámos postos de controlo para não deixar passar ninguém com mais de 18 anos. Não tínhamos combatentes. Foi neste quadro que o comandante Kassanji juntou pouco mais de uma centena de homens e foi enfrentar os sul-africanos no morro do Chingo. Ele morreu por sentimento. Mas os militares não podem pensar com o coração. Aquela acção estava votada ao fracasso. Infelizmente, foi isso que aconteceu”.

Xietu nomeia comando

As FAPLA recuam para Porto Amboim e em breve também o comando da Frente Centro se desmoronou: “ficámos sem comando”. A situação era perigosa mas durou pouco tempo. Aterrou uma avioneta em Porto Amboim que transportava o comandante Xietu, na época o chefe do Estado-Maior Geral das FAPLA. Tinha recebido ordens directas de Agostinho Neto para avaliar a situação e nomear um novo comando. Uns dias antes tinham chegado os primeiros cubanos sob o comando do general Arguelles, que acabou por morrer em combate: “Na Batalha do Ebo morreram muitos cubanos”, recorda o general Faceira (Defunto).
O comandante Xietu nomeou cinco combatentes para o comando: Katando, Mundo Real, Mbeto Traça, Luís Faceira e António Faceira (Defunto). Os sul-africanos avançavam ao longo do rio Cuvo. Na verdade é o rio Queve, mas a partir da Conda chama-se Cuvo: “foi lá que travámos os primeiros combates que nos permitiram criar as condições para a ofensiva, que só terminou quando os invasores chegaram à fronteira do Sul”.

Sabotagem de pontes

Para dificultar a mobilidade das tropas sul-africanas, as FAPLA partiram várias pontes na região: “eu sabotei a ponte das Cachoeiras. No regresso, um camião que transportava tropas, capotou. Juntámos os vivos e continuámos em frente”. Depois foi partida a ponte entre a Gabela e a Conda.
O comandante Zé Maria, hoje general, sabotou duas pontes sobre o rio Nia, uma em Catofe, a outra na estrada entre a Quibala e a Cela (Wacu Cungo). Antes, tinha tomado a Quibala, colocando o posto de comando na estalagem do Muquitixi, ponto muito frequentado por quem viajava entre Luanda e o Huambo. O acesso à ponte do rio Queve, na época a maior de Angola, também foi sabotado.
Os sul-africanos começavam a enfrentar dificuldades logísticas. Os combates travavam-se nas zonas da Gabela, Quibala e Cariango, com boas condições naturais de defesa, por ser uma região montanhosa. As Forças Armadas, reorganizadas e com o novo comando, travavam combates diários. Eram constantes os bombardeamentos de artilharia “e havia uma intensa actividade de reconhecimento. Nesta fase também fizemos algumas acções na retaguarda das tropas invasoras”, revelou o general Faceira (Defunto).

Treino dos combatentes

Ao mesmo tempo que se desenrolavam os combates, centenas de jovens recebiam instrução militar. O general Luís Faceira recorda: “tínhamos poucos combatentes e, por isso, era necessário dar aos civis uma formação mínima. Mas estávamos a preparar o pessoal para a guerra clássica. As técnicas de guerrilha já não eram eficazes para enfrentar os invasores sul-africanos”. 

O momento decisivo foi quando o comando das tropas invasoras enviou as forças principais para Luanda, pela estrada Cela, Quibala, Dondo: 

“Eles cometeram um erro estratégico. Aquela rota exigia mais apoio logístico e era muito mais favorável à nossa defesa”, disse o general Luís Faceira. Os invasores tiveram de enfrentar uma cada vez mais forte resistência. Foram criados pontos de observação nas montanhas. Os soldados já sabiam como fazer uma guerra convencional. Tudo aconteceu entre meados de 1975 e o dia 23 de Novembro, quando se deu a da Batalha do Ebo.
O general Luís Faceira afirma:

“Os invasores perceberam que era cada vez mais complicado o abastecimento logístico, apesar de usarem a pista de aviação na Cela. Nos nossos pontos de observação detectámos que a força principal inimiga estava a mudar rumo ao Ebo. Regressaram à rota Lobito, Sumbe, Porto Amboim, Luanda. Preparámo-nos para impedir a sua chegada à capital”.

Os derrotados do Ebo

O general Luís Faceira conta como foi preparada a resistência às tropas invasoras: 

“Decidimos que no Ebo existiam as condições ideais para travar a ofensiva do inimigo. Criámos uma vanguarda com a missão de disparar e fugir. O objectivo era obrigá-los a desdobrar as suas forças antes do tempo. As nossas forças principais foram colocadas na encosta da montanha do Ebo para parar o avanço dos sul-africanos. Formámos um falso escalão na retaguarda para impedir que os nossos soldados recuassem. Ali tínhamos que combater até ao último homem. Se o inimigo passasse, chegava facilmente a Luanda e era o fim. A Independência Nacional tinha sido proclamada há apenas 12 dias. Foi formado um quarto escalão para entrar em acção se eles rompessem as nossas linhas. Mas não romperam. Por fim criámos uma reserva para missões imprevistas”. 

Nesta fase Angola já era independente. A pressão no Norte tinha acabado. Foi possível enviar para o Ebo os “BM21” e alguns tanques. Os invasores sul-africanos estavam condenados à derrota.

Combates bota a bota

Dia 23 de Novembro de 1975. República Popular de Angola. A Batalha do Ebo começou: 

“Quando os invasores chegaram ao bordo dianteiro entrou em acção a nossa artilharia. Os blindados do inimigo entraram em terrenos enlameados e alguns ficaram enterrados quando faziam manobras de recuo. Outros foram destruídos. As distâncias foram reduzidas e entrou em acção a infantaria. Passámos a combater bota a bota. Prendemos três soldados boers que depois foram apresentados em Addis Abeba, na sede da OUA. Eram a prova de que Angola estava a ser agredida”. Assim falou o general Faceira (Defunto).
Quando terminou a Batalha do Ebo, as Forçar Armadas prepararam imediatamente a ofensiva. 

O general Luís Faceira partiu em perseguição do inimigo e libertou o Lobito: “Os primeiros combates começaram cerca de 20 quilómetros antes da cidade. Os sul-africanos entraram em debandada: “Quando chegámos ao Lobito já não houve resistência. Mas deixaram para trás civis sul-africanos que trabalhavam com a UNITA. Umas horas depois recebi um emissário do comando invasor. Pediam-me que permitisse a retirada dos civis. Eu acedi. Fomos buscá-los à Restinga e foram escoltados até ao ponto combinado. Agora os seus aliados da UNITA estão a dizer que somos intolerantes”.

Ofensiva para ganhar

O general Faceira (Defunto) conta que os centros de instrução já tinham formado muitos soldados. A companhia dos cubanos foi reforçada. Chegou material de guerra novo: “quando fomos para a ofensiva foi para ganhar, não para perder ou empatar. Pelas minhas contas, já tínhamos três vezes mais soldados e forças de artilharia do que eles. Mas é bom lembrar que nessa altura ainda não existia Força Aérea em Angola. Se tivéssemos apoio da aviação o inimigo tinha sido expulso mais rapidamente. Fizemos muitos combates. Enterrávamos os nossos mortos e continuávamos. Nunca parámos!”

Em Março de 1976, Angola ficou livre dos invasores estrangeiros. O Presidente Neto decretou o “Carnaval da Vitória”.

O general Faceira Defunto) passou à reserva logo a seguir à derrota de Savimbi no Lungué Bungo. Este ano chegou a reforma.

Repouso do guerreiro

Faceira fez o serviço militar obrigatório no Exército Português, numa companhia de “Comandos”. Depois de desmobilizado iniciou a militância pela Independência. Em 1972, foi clandestinamente para Kinshasa: “Atravessei a fronteira a pé”. Na capital zairense pediu asilo político à embaixada da URSS: “eles recusaram. Depois fui à Embaixada do Congo Brazzaville. Pegaram em mim e levaram-me à sede da FNLA. Fui enviado para a base de Kinkuzu. Fiquei lá 14 meses”. 

Nesta base a repressão contra os que contestaram a direcção de Holden Roberto estava no auge: “Via fuzilamentos todos os dias. Eram os homens da segurança de Mobutu que fuzilavam os angolanos. Conheci o Noé, um angolano gigantesco, barbudo e maneta. Era um dos revoltosos. O ministro da Agricultura do Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE) chegou junto dele e disse que ia ser fuzilado. Ele respondeu: ‘isso não me interessa. O que está aqui a acontecer, na História de um povo, é apenas uma vírgula, nunca um ponto final.’ Fiquei muito impressionado com a coragem dele”.

Um dia, Holden foi a Kinkuzu e chamou Faceira: “perguntou-me se estava bem. Eu disse que tinha problemas no estômago e ele mandou-me para Kinshasa a fim de ser tratado. A minha amiga Constância Carneiro arranjou um canoeiro para me levar a Brazzaville. Já no rio, fui preso. Mas consegui fugir. Fiquei escondido algum tempo, em casa da minha amiga, e depois na casa do pai dela. Alguns dias mais tarde, um segundo canoeiro levou-me com segurança para Brazzaville”.
Faceira apresentou-se na delegação do MPLA “onde fui recebido de braços abertos”. Depois, foi enviado para Dolisie e começou a sua etapa de combatente das forças de libertação: “passei pela Base Kalunga e mais tarde entrei em Angola e fiquei na Base Pavi até acabar a luta armada de libertação nacional. Combati ao lado dos comandantes Margoso e Foguetão”. 

Até à morte de Savimbi, o general Faceira foi comandante das Forças Especiais das FAA. Considera o ano de 2002 “o fim da guerra, mas não o fim da verdade”.
Explica porquê: “Esses senhores da UNITA que vão pedir a terceira independência, na capital da potência colonial, envergonham-me. Aqueles que dizem que não existe tolerância política em Angola, são ingratos. Só estão vivos porque o Presidente José Eduardo dos Santos teve pena deles. Caso contrário, morriam todos e nem precisávamos de dar um tiro”.

''A nossa resistência foi fortíssima''
 
A 23 de Novembro de 1975, o hoje coronel na reforma Augusto António “Trocado”, era combatente das FAPLA e participou directamente na Batalha do Ebo. Hoje ele recorda a dureza dos combates que culminaram com a fuga desordenada dos invasores. O veterano de guerra, 39 anos depois, diz que poucos meses antes, a província do Cuanza Sul praticamente não tinha forças armadas. “Foi por este motivo que o comandante Mbeto Traça decidiu criar os Centros de Instrução para formar as tropas capazes de defender a região dos invasores.”
O coronel “Trocado” recorda que enquanto centenas de jovens aprendiam técnicas militares nos Centros de Instrução Revolucionária (CIR), ao mesmo tempo acompanhavam com preocupação as movimentações das tropas invasoras no Sul do país. Benguela e Lobito estavam a ser fustigadas com artilharia pesada mas predominava a esperança de que os invasores não iam atingir o Cuanza Sul.
“Inesperadamente, acabaram por tomar a cidade do Sumbe. Não tínhamos tropas capazes de impedi-los de avançar. As FAPLA recuaram até Porto Amboim. A partir daí impusemos como limite a ponte do rio Queve”, revela o coronel “Trocado”.
Todos os caminhos que conduziam a Luanda começaram então a ser cortados, com a destruição de pontes e pistas de aviação: “Mas os sul-africanos estavam ansiosos por chegar a Luanda e viram na ponte do rio Ebo, a melhor opção. No dia 23 de Novembro de 1975 pretendiam avançar pela Quilenda e rumar para o Bom Jesus. Tivemos que reagir, e nas proximidades do rio, a partir das cinco e meia da manhã e metade do período da tarde, houve confrontos de artilharia. Eles foram surpreendidos com uma forte resistência da nossa parte”.
“Trocado” recorda que vários tanques das forças inimigas ficaram no terreno. No Ebo, a vitória deveu-se, em grande parte, ao espírito de camaradagem, porque em termos de artilharia e preparação militar, o desnível entre os dois lados era acentuado: “O armamento à disposição das FAPLA era inferior ao das tropas invasoras, razão pela qual os nossos combatentes tiveram de recuar desde a fronteira Sul até aqui”. 
O cessar da artilharia, perto das 17 horas do dia 23 de Novembro, abriu caminho aos combates de infantaria, que se prolongaram até às 21 horas. “Causámos baixas consideráveis ao inimigo, e fizemos prisoneiros. Cada combatente sabia que no Ebo estávamos a defender a Independência Nacional e a integridade do território. Apesar de termos tido algumas baixas, a vitória no Ebo foi decisiva e moralizante para as tropas”, sublinhou Augusto António.
 
Em defesa da pátria
 
O coronel “Trocado” recorda que todos os combatentes na Batalha do Ebo tinham um objectivo: “Para o inimigo passar por nós e chegar a Luanda, tinha que passar por cima dos nossos cadáveres. Estávamos todos prontos a morrer em defesa da nossa Pátria”. 

A morte de um companheiro aumentava a revolta entre os militares das FAPLA e aqueles que iam para a frente de combate sabiam que a vitória era uma questão de tempo. Independentemente das tácticas e técnicas de combate militar, “Trocado” afirma que o conhecimento do terreno onde se desenrolaram as operações foi determinante para a vitória das FAPLA: “mas também quero destacar a entrega total e o apoio logístico e moral que toda a população do Cuanza Sul nos deu antes e durante a grande batalha do Ebo”.
“Trocado” viu muitos companheiros morrer. Recorda o comandante Kassanjy, de Benguela, e o general cubano Raul Arguelles: “Quero enaltecer o apoio prestado pelos internacionalistas cubanos que nos ajudaram a conquistar e preservar a Independência Nacional”.
   
Percurso de um herói
 
Nascido em Janeiro de 1943, na Quilenda, outrora município do Amboim, o coronel Augusto António “Trocado” estudou na missão católica do Ebo.
Em meados dos anos 60, foi cumprir o serviço militar obrigatório no Exército Português. Entrou para as FAPLA em Setembro de 1974, numa altura em que a revolução para a conquista da Independência de Angola estava no auge.
À semelhança de muitos jovens da sua época, “Trocado” militou nas células do MPLA coordenadas por Manuel Pedro Pacavira. O alistamento nas FAPLA era feito sob condições difíceis. A falta de uniformes era um facto, mas durante a instrução militar a motivação era visível no rosto dos voluntários.
Entre várias facetas do seu percurso militar,  O coronel Augusto António “Trocado” teve a responsabilidade de criar às condições para receber no Ebo os Esquadrões Cuenha, Gunzacabolo, Cambodja e Vietname, que tiveram um papel fundamental na reconquista do Lobito.
Apesar de ter saído ileso da Batalha do Ebo, o coronel Trocado tem no corpo marcas provocadas pelas diferentes batalhas que travou durante várias décadas. “Fui alvejado em combate e orgulho-me de ter participado em todos as etapas de libertação do nosso país. Hoje, estamos em paz. Valeu a pena a entrega e o sacrifício de todos.”
Depois de ter exercido funções de governação na província do Cuanza Sul, actualmente o coronel Augusto António “Trocado” dedica-se  ao desenvolvimento da agro-pecuária e ao ramo hoteleiro.

Ler também em Página Global:

Angola | Morro do Sombreiro - O Camião Dombolo Zangado

Sem comentários:

Mais lidas da semana