terça-feira, 8 de novembro de 2022

AUTOESTRADA PARA O INFERNO

Joana Pereira Bastos | Expresso (curto)

Bom dia,

A Europa viveu o verão mais quente da história e atravessa a pior seca dos últimos 500 anos, em África a falta de chuva deixa milhões de pessoas à fome, no Paquistão ou no Bangladesh somam-se mortes provocadas por inundações. Um pouco por todo o mundo multiplicam-se eventos climáticos extremos cada vez mais devastadores. Nenhum país está imune. Mas apesar dos avisos, a comunidade internacional continua a não se comprometer seriamente no combate ao aquecimento global, que ameaça o futuro de toda a humanidade. “Estamos numa autoestrada para o inferno, com o pé no acelerador”, resumiu ontem o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no discurso inaugural da 27ª conferência da ONU sobre alterações climáticas (COP27).

Mais uma vez, Guterres não poupou nas palavras. Perante os 197 países ou blocos representados na cimeira, que decorre até ao final da próxima semana em Sharm el-Sheikh, no Egito, voltou a avisar que o planeta “aproxima-se perigosamente do ponto de não retorno”, que “estamos a perder a luta das nossas vidas” e que “a humanidade só tem uma escolha: cooperar ou morrer”. A equação é simples: ou há um “pacto de solidariedade climática”, em que todos os países fazem um esforço extra para reduzir as emissões esta década, ou estaremos a assinar um “pacto de suicídio coletivo”, advertiu.

O apelo não podia ser mais dramático. Mas o mais provável é que volte a cair em saco roto. Os líderes da China, Rússia e Índia, que estão entre as maiores e mais poluidoras economias do planeta, nem sequer estiveram presentes para ouvir. Muitas das nações mais ricas e desenvolvidas, como os EUA ou o Reino Unido, não estão a cumprir os pagamentos que se comprometeram a fazer para compensar as perdas e danos dos Estados mais pobres, que são simultaneamente os mais atingidos, e para os ajudar a mitigar os efeitos do aquecimento global. E a crise energética provocada pela guerra na Ucrânia desencadeou em vários países uma nova corrida aos combustíveis fósseis. Ainda ontem, Espanha, por exemplo, reativou a maior central a carvão, que há dois meses, e supostamente em definitivo, tinha desativado. Do lado de cá da fronteira, já não há nenhuma a funcionar e António Costa garante mesmo que Portugal está em condições de antecipar em cinco anos a meta da neutralidade carbónica. Ainda assim, está longe de ser o suficiente, pelo menos para os jovens ativistas que ontem ocuparam várias escolas em Lisboa.

A verdade é que já ninguém acredita que seja possível limitar a 1,5ºC a subida da temperatura média do planeta até ao final do século. Os cortes de emissões de gases com efeitos de estufa adotados até agora a nível global encaminham o mundo para um aquecimento de 2,8ºC – quase o dobro do valor traçado como meta nas outras cimeiras do clima realizadas desde 2015, quando foi assinado o Acordo de Paris. Nesta COP, o objetivo dos 1,5ºC mantém-se, tal como a probabilidade de se repetir o fracasso das anteriores. Para a jovem ativista sueca Greta Thundberg, que decidiu não marcar presença, o problema é que estas cimeiras “não são realmente destinadas a mudar o sistema”, mas antes uma oportunidade para muitos líderes fazerem um “greenwashing” – uma lavagem de imagem, sem resultados. Por outras palavras, um exercício global de hipocrisia e irresponsabilidade. Nos próximos dias se verá se esta COP será (mais) um flop.

OUTRAS NOTÍCIAS

Nos Estados Unidos, realizam-se hoje as eleições intercalares que vão determinar qual o partido que assumirá o controlo das duas câmaras do Congresso e que vão funcionar como um teste à popularidade de Joe Biden, numa altura em que Trump volta a dar sinais de que pretende candidatar-se às presidenciais de 2024. Muitos dos republicanos que concorrem a estas midterms não acreditam na legitimidade do atual Presidente e podem vir a ter uma influência decisiva nas próximas eleições. Para já, uma derrota dos democratas pode transformar num inferno os dois últimos anos do mandato de Biden. E pode mesmo vir a significar uma derrota da própria democracia.

Quem já veio a público anunciar alto e bom som a sua posição foi o dono do Twitter, Elon Musk, que apelou ao voto nos Republicanos.

Qualquer que seja o resultado das eleições, Biden garante que os EUA manterão um apoio “infalível e inabalável” à Ucrânia, onde têm vindo a aumentar nos últimos dias os bombardeamentos das forças russas no norte do país. Já no sul, as autoridades pró-russas anunciaram ontem o fim da retirada organizada de civis de Kherson, avisando os que ainda pretendem sair da zona que terão de fazê-lo por meios próprios.

Ainda faltam alguns dias para a divulgação das previsões económicas do outono, mas a Comissão Europeia já começou a preparar-nos para o pior. Para quem tinha esperança que o próximo ano fosse mais brando, Bruxelas já veio avisar que a economia vai desacelerar ainda mais em 2023. A inflação deverá continuar elevada, embora a expectativa é de que comece a abrandar.

Por cá, o Governo pondera estender aos novos contratos o travão à subida das rendas que anunciou em setembro para proteger os inquilinos de uma escalada de preços. Para evitar abusos, o ministro Pedro Nuno Santos está a estudar uma extensão do limite de 2% imposto à atualização das rendas em 2023 aos contratos que vierem a ser celebrados.

A indicação de Paulo Raimundo para suceder a Jerónimo de Sousa no cargo de secretário-geral do PCP não agradou a renovadores comunistas como Carlos Brito e Domingos Lopes, que criticam a escolha de um militante "totalmente desconhecido" e uma "completa incógnita" no palco político. Raimundo herda o partido em mínimos históricos eleitorais, reduzido a seis deputados e com menos 200 mil votos do que tinha quando Jerónimo chegou à liderança.

Se está a pensar viajar no Natal ou no Réveillon, saiba que a TAP prevê cancelar quase 400 voos até ao final do ano, período em que há habitualmente maior procura, a par do verão.

No futebol, FC Porto e Benfica conheceram ontem o adversário dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões: os portistas vão jogar com o Inter de Milão, enquanto os benfiquistas enfrentarão o Club Brugge. Os clubes portugueses foram cabeças de série do sorteio e por isso vão jogar a segunda mão em casa (a 15/22 de fevereiro o primeiro jogo e 7/14 de março o segundo). Já o Sporting enfrentará o Midtjylland no playoff da Liga Europa, prova que vai ter também um Ronaldo-Lewandowski (o mesmo é dizer um Manchester United-Barcelona). Na Liga Conferência, o Braga vai a Itália jogar com a Fiorentina.

FRASES

“Estamos a tratar a atmosfera como um esgoto”,

Al Gore, ex-vice-presidente norte-americano na COP27

“Estamos cada vez mais conscientes da dureza da vossa dor e gostaríamos de poder colaborar convosco na superação destes injustos e, a todos os títulos, inadmissíveis atentados",

José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, dirigindo-se às vítimas de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja

"Um programa que é para ser executado até ao final de 2026 não é para estar concluído no final de 2022. É para ser cumprido nos exatos termos em que foi contratado e programado - e assim está a acontecer",

António Costa sobre a execução dos fundos do PRR, desvalorizando os avisos do Presidente da República à ministra da Coesão

SUGESTÕES DE PODCASTS

Vhils: “Há um trabalho muito invisível feito pela minha equipa. Tenho um bocado de conflito em ser o patrão, mas sim, são 54 pessoas” Oiça a entrevista de Alexandre Farto, mais conhecido por Vhils, a Francisco Pinto Balsemão no podcast Deixar o Mundo Melhor

Chegou ao fim a sangrenta Guerra na Etiópia? Oiça a análise de Alexandra Magnólia Dias, professora assistente do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de Lisboa, no podcast África Agor a

Alice, Leonor e Ideal: até onde tem de ir o ativismo climático para o ouvirmos? No dia em que centenas de jovens estão, num ato de desobediência civil, a ocupar quatro faculdades e duas escolas secundárias em Lisboa, Daniel Oliveira conversa no podcast Perguntar Não Ofende com três jovens ativistas ambientais.

O QUE ANDO A LER

“Declarei a Guerra que Não Queria – Memórias de Portugal do Embaixador Alemão”, de Friedrich Rosen (Aletheia Ed.)

Quando, em 1912, o embaixador alemão Friedrich Rosen foi destacado para Lisboa, teve de ouvir repetidamente de amigos e colegas, até à data da partida, “expressões de pesar” e de alguma compaixão por ser enviado para um país que estava então “à margem dos grandes acontecimentos mundiais”. Mal sabia na altura que a missão, que chegou a considerar a mais importante da sua carreira diplomática, haveria de terminar abruptamente com a entrega, pelas suas próprias mãos, de uma declaração de guerra a Portugal.

Na essência da sua missão estava o tratado secreto que Alemanha e Inglaterra haviam assinado sobre as colónias portuguesas. Baseado no pressuposto de que “o Estado português, com a sua desordem financeira crónica, não poderia permitir-se a longo prazo o luxo de um império colonial extenso e pouco produtivo em matéria de receita”, o acordo germano-britânico estabelecia que, no momento em que Portugal se visse forçado a pedir um resgate, as duas potências disponibilizar-se-iam, juntas, para conceder um empréstimo, obtendo como contrapartida a administração das colónias portuguesas em África, que passariam a dividir entre si. O tratado, originalmente assinado no final do século XIX e novamente rubricado em 1913, nunca chegou, porém, a ser ratificado devido ao crescimento das tensões entre Inglaterra e Alemanha, que depois se defrontaram na I Guerra Mundial.

Nas suas memórias, com tradução de José Lamego, Rosen descreve, com detalhe, a sua atividade em Lisboa até ao dia 9 de março de 1916, quando recebeu instruções de Berlim para comunicar uma declaração de guerra a Portugal, considerado pela Alemanha como um “vassalo da Inglaterra”. Apesar de não concordar com a ordem, Rosen cumpriu-a e no dia seguinte foi obrigado a deixar o país a que se afeiçoara. Na despedida, um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros entregou-lhe um ramo de “flores magníficas” em nome do Governo português – um gesto de “cavalheirismo” próprio da “cordialidade portuguesa”, característica nacional que tanto impressionou o embaixador alemão nos quatro anos em que cá viveu.

Um dos aspetos mais interessantes do livro é precisamente o retrato que traça nas suas memórias sobre as idiossincrasias dos portugueses. Em plena I República, o embaixador assistiu em Portugal a uma sucessão de revoltas, golpes de estado e atentados à bomba, que frequentemente o acordavam à noite e que atribuía, em parte, “à ociosidade” do povo. Impressionou-se com a ignorância da população – à época, “cerca de 70% das pessoas eram analfabetas” e mesmo algumas senhoras “de estatuto social elevado” não sabiam ler nem escrever – e surpreendeu-se com vários costumes locais, desde a tardia hora de deitar - “em nenhum outro lugar da terra eu ouvi tanto barulho noturno como em Lisboa”, escreveu – até ao hábito de cuspir para o chão, de passar tempo à janela a “observar a vida desinteressante das ruas”, de ficar horas a fio no café “sem encomendar o que quer que seja” ou de ter como refeição predileta “uma porção de bacalhau norueguês”, apesar “de todas as iguarias” do mercado de peixe nacional. Mas, sobretudo, Rosen ficou rendido à “grande bondade de sentimentos” e à “espantosa honestidade e sentimento de honra” de um povo que “não tem nada de antipático”.

Por hoje é tudo. Com “cordialidade” e simpatia me despeço, desejando-lhe uma ótima terça-feira.

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