sábado, 26 de novembro de 2022

Mundial de 2022: o capitalismo não pode matar o futebol - por mais que tente

A paixão dos torcedores de todo o mundo pela Copa do Mundo do Catar é evidente, assim como o legado de Maradona e Garrincha.

Belén Fernández* | Al Jazeera | opinião

Mais ou menos uma semana antes do início da Copa do Mundo de 2022 no Catar, eu caminhava pela cidade costeira de Zihuatanejo, no estado de Guerrero, no sul do México, quando passei por um grupo de crianças jogando futebol com uma garrafa plástica de Coca-Cola. Eles eram tão alegremente animados quanto qualquer grupo de crianças jogando futebol em qualquer lugar, enquanto a garrafa de Coca-Cola era, pensei, lamentavelmente apropriada em um mundo governado pela toxicidade corporativa .

#Traduzido em português do Brasil

Foi particularmente apropriado, talvez, dado que a Coca-Cola e o futebol são antigos. A empresa, que é patrocinadora oficial da Copa do Mundo desde 1978, firmou uma associação formal com a FIFA em 1974 – embora seu logotipo tenha saturado os eventos da Copa do Mundo desde 1950. A parceria inicialmente visava ostensivamente promover programas de desenvolvimento juvenil, já que há claramente nada melhor para o desenvolvimento da juventude do que ingerir um líquido marrom pegajoso que faz mal à saúde humana.

Claro, essa aliança é apenas a ponta do iceberg em termos dos esforços do capitalismo global para sugar a alma do futebol e erradicar qualquer resquício de alegria primordial, monetizando e mercantilizando tudo dentro e fora do campo. Dado o dilúvio de propaganda corporativa que chamamos de “patrocínio”, o espectador de futebol não iniciado seria perdoado por pensar que a Adidas era um time de futebol – ou que as partidas são travadas entre as companhias aéreas Emirates e Etihad.

E nada como patrocinar a maior competição de futebol para melhorar a sua marca internacional. As empresas chinesas também se destacaram – elas estão liderando os gastos para a Copa do Mundo do Catar.

Em seu livro, El Fútbol a sol y sombra (Futebol ao sol e sombra), publicado pela primeira vez em 1995, o renomado escritor uruguaio e fanático por futebol Eduardo Galeano observou como todo jogador de futebol se tornou um “anúncio em movimento” - embora não todos ficaram felizes com esse arranjo. Em meados da década de 1950, ele lembrou, quando o proeminente clube Peñarol de Montevidéu tentou impor publicidade da empresa em suas camisas, 10 membros da equipe obedientemente entraram em campo com as camisas atualizadas, enquanto o jogador negro Obdulio Varela recusou: “Eles costumava arrastar nós, negros, com anéis no nariz. Esses dias se foram.”

Para ter certeza, nunca é apenas diversão e jogos quando quantidades obscenas de dinheiro estão envolvidas. Veja o caso de Horst Dassler – filho do fundador da Adidas, Adi Dassler, ele próprio um charmoso ex-membro do Partido Nazista – que em 1982 fundou uma empresa chamada International Sports and Leisure, que prontamente adquiriu direitos exclusivos de marketing e TV para as operações da FIFA, incluindo a Copa do Mundo. Isso foi feito pagando subornos ao então presidente da FIFA, João Havelange - o mesmo Havelange que gentilmente apareceu ao lado do ditador argentino Jorge Videla durante a Copa do Mundo de 1978 em Buenos Aires.

Essa ditadura foi responsável pelo assassinato ou desaparecimento de cerca de 30.000 supostos esquerdistas em uma guerra suja de sete anos que recebeu sinal verde de – quem mais? – os Estados Unidos, que sempre estiveram ansiosos para ter regimes de direita mais maléficos a bordo em sua busca para tornar o mundo seguro para o capitalismo.

Em 1998, Havelange foi substituído por Sepp Blatter, que também foi acusado de compra desenfreada de votos e manipulação de dados financeiros e que, segundo Galeano, fez Havelange parecer “uma irmã de caridade”. Galeano morreu em abril de 2015, um mês antes de o Departamento de Justiça dos EUA prender sensacionalmente quatorze dirigentes da FIFA e executivos corporativos por acusações de corrupção, com a procuradora-geral dos EUA, Loretta Lynch, lamentando que os indivíduos tenham “corrompido os negócios do futebol mundial para servir a seus interesses e enriquecer eles mesmos".

Mas, como os EUA bem sabem, o autoenriquecimento corrupto e a impunidade corporativa são negócios comuns no capitalismo – o que também produziu uma “gentrificação” do próprio esporte, como os pesquisadores mostraram. Um estudo publicado pela Royal Society em dezembro de 2021 descobriu que a “monetarização excessiva do futebol” levou ao aumento da desigualdade entre os times das principais ligas europeias e a uma previsibilidade crescente dos resultados das partidas. Ainda que os responsáveis ​​pela governança do esporte afirmem estar globalizando o futebol, na realidade, o processo reproduz a desigualdade endêmica da globalização corporativa.

De fato, o próprio espírito do futebol profissional foi corrompido pela conversão do esporte em uma indústria – resultando em um jogo regimentado e tecnocrático que visa transformar jogadores em robôs. Como disse Galeano, essa abordagem do futebol “proíbe toda diversão”; no interesse de maximizar a produtividade e aumentar o lucro, ela “nega a alegria, mata a fantasia e proíbe a ousadia”. A magia, afinal, não é lucrativa

*Editor colaborador da Jacobin Magazine

Imagem: Torcedores argentinos dançando no FIFA Fan festival no Qatar [Sorin Furcoi/Al Jazeera]

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