sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

ESPANTOSO, O ESPANTO

Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Bruxelas e Estrasburgo acordaram para as malas de dinheiro vivo e para o tráfico de influências, como se um escândalo de interesses se tivesse abatido subitamente, sem pré-aviso ou contrato-promessa, sobre as mais altas esferas de decisão europeias.

Num impulso, a realidade que se sentia passar entre os dedos, desafiando os pingos da chuva, impôs-se às suspeitas. A democracia europeia está sob ataque e a União Europeia não está à venda, garantiu Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu. Viktor Orbán riu-se por tempo indeterminado.

O pagamento de elevadas quantias de dinheiro por parte do regime catari e da autocracia marroquina, na tentativa de influenciar decisões europeias e lavar a imagem dos regimes, à boleia da muito polémica atribuição do Mundial e da tentativa de esquecimento da autodeterminação do Sara Ocidental, não surpreende ninguém e só espanta pelo aparente amadorismo das operações. É também nessa terra de crença na impunidade que germina boa parte da doença da corrupção. Há cerca de 13 000 entidades legitimadas como grupos de lóbi em Bruxelas e Estrasburgo. E não é ilegal, é regulado. Há 485 ex-deputados que trabalham directamente nos seus grupos de interesse lobistas. E não é ilegal, é permitido. As portas giratórias nem precisam de girar duas vezes quando a requisição de serviços é imediata. Durão Barroso e a Goldman Sachs que o digam. Fingir espanto, agora, perante o que parece ser a ponta de um iceberg, é pura demagogia.

As regras de transparência são estupendas se houver vinculação para a vigilância e alerta para os sinais, como defende Ana Gomes. A falha agora exposta, explorada por Eva Kaili e comparsas, foi um paraíso em terra de legisladores com esquecimento selectivo: o princípio onde se fixa o dever de transparência e declaração de todos os contactos, não inclui nenhum país fora da União Europeia. O pedido para concretização de um organismo de ética europeu, por parte da Comissão Europeia de Ursula von der Leyen, marina nas instituições europeias há uma mão cheia de anos. Como Marisa Matias refere, o que se agora se torna visível não é apenas "um problema de maçãs podres no cesto".

É imperioso que a crise na Europa não se agudize pela crise na União Europeia. É o momento, uma vez por todas, de parar de fingir espanto e levar a sério o comprometimento moral com a falência dos processos que geram e amplificam a crise das democracias europeias.

*Músico e jurista

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

Sem comentários:

Mais lidas da semana