terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O TERCEIRO DESASTRE DE ALCÁCER QUIBIR – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

José de Carvalho era um ginasta do outro mundo. Quando os mais velhos tinham aulas de educação física no ginásio do liceu Salvador Correia eu “fugava” à minha aula só para os ver saltar no plinto e darem saltos mortais à frente e à retaguarda. O Lucas, o Cuco Rosa, o Espírito Santo e o Leandro também eram grandes ginastas. Eu treinei, insisti, treinei e quando tentei saltar o plinto em voo, ia partindo o pescoço. 

Nunca fui dos que desistem à primeira e fui insistindo até conseguir. Depois passei para os saltos mortais sob orientação do professor Daniel Leite. Nunca atingi a perfeição do nosso Herói Nacional Hoji ia Henda (José de Carvalho) mas na praia dos Rotários fiz muito flic flac com um salto mortal encarpado no fim, para impressionar as meninas sanguitas. Um quarto que aluguei no Bairro Operário, não tinha cama. O senhorio pôs dois luandos no chão e por cima um colchão de pano riscado, cheio com folhas de milho e algodão descaroçado. Para impressionar a minha amada Canducha começava a fazer flic flacs no quintal e só acabava no colchão, já pronto para amar. 

Não sei o que se passa com os outros ginastas mas eu não tinha noção dos limites. Um dia estávamos na esplanada do Majestic e para impressionar umas miúdas mistícias na mesa ao lado, afastei-me e comecei a fazer flic flacs à retaguarda. Acabei com um mortal. Era suposto ficar sentado na cadeira, mesmo de frente para as moreninhas. Falhei e fiquei todo amachucado. Acontece aos melhores. O Ninito (Banga Ninito!)disse que não devemos praticar ginástica de alto risco e beber ao mesmo tempo. Foi isso que me levou ao falhanço. Desde então abandonei a ginástica. Beber dá quase tanto prazer como a música e a poesia.

Isto para vos falar dos desastres dos portugueses no Norte de África. A primeira investida contra Ceuta e Tânger deu resultado. Depois as coisas complicaram-se e o infante D. Fernando, o Santo, organizou uma cruzada contra os infiéis. Entrou em Marrocos com a espada numa mão e a cruz na outra. Aquilo correu mal e foi feito prisioneiro, corria o ano de 1437. Levaram-no para Fez e lá morreu santificado. Foi o primeiro grande desastre no Norte de África.

O segundo foi mais trágico. O rei português D. Sebastião avançou com muita tropa para Marrocos e no dia 4 de Agosto de 1578, participou na batalha de Alcácer Quibir. Desapareceu sem deixar rasto. O mais provável é que tenha morrido. Os fidalgos portugueses que o acompanharam e foram presos em combate, disseram que o jovem rei foi muito maltratado. Nunca apareceu, nem morto nem vivo. Nem como fantasma. Nem a sua alma se apresentou nas noites mais tenebrosas, reclamando o trono. 

Na época, começou a circular, em segredo, que o rei ia voltar de Marrocos, numa noite envolta em espeço nevoeiro. Ainda hoje quando a névoa não deixa ver um palmo à frente do nariz, muita gente fica alerta esperando sua majestade. Parece que o Tio Célito até montou um posto de vigia em Belém. Assim nasceu o sebastianismo.

O terceiro desastre deixou a tribo do futebol em estado catatónico. Depressões terríveis. A selecção de Cristiano Ronaldo jogou contra Marrocos no Mundial do Catar. Ao contrário do que foi anunciado, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) não permitiu que a estrela do futebol português jogasse de muletas. Nem sequer autorizou que usasse uma bengala. Ele entrou em campo no primeiro jogo com mil cautelas, não fosse partir-se todo como aconteceu comigo quando me enfeitei para meninas mistícias na explana do Majestic, em São Paulo. 

Ronaldo, com medo de ficar tetraplégico, pediu ao seu empregado seleccionador para o deixar no banco quando Portugal teve de enfrentar a Suíça. Correu bem.

No jogo dos quartos-de-final, o seleccionador maldoso pôs o Cristiano Ronaldo a jogar mais de 50 minutos. O fabuloso futebolista saiu do campo a chorar com dores nas articulações. Os marroquinos ganharam e vão disputar com a França o passaporte para a final. 

De Cristiano Rionaldo nada se sabe. Os portugueses já dizem que ele há-de voltar numa noite de raios, coriscos e bruxas, para se vingar do seu empregado seleccionador. A vingança dos deuses é terrível. O sebastianismo deu lugar ao cristianismo ronaldista. Ele há-de voltar a jogar como há 20 anos e sem muletas ou bengala. 

Os ídolos têm sempre o mesmo fim. Os pés de barro ficam esboroados e eles caem fragorosamente. Tristeza mais triste não há. Já estão a perceber por que abandonei a ginástica na flor da idade. Sendo eu o ídolo da Canducha e de uma senhora que emprestava dinheiro a juros, se me atrevesse a continuar nos saltos mortais, um dia ficava sem os pés de barro e passava o resto da vida a escrever crónicas sem piada nenhuma.

A selecção de Marrocos chegou onde nenhuma africana chegou. Temos África nas meias-finais. E estou certo de que os marroquinos, que aviaram Bélgica, Espanha e Portugal, vão ser campeões do mundo. Assim os árbitros permitam. Não esqueço que o Gana perdeu com a selecção de Cristiano Ronaldo devido à roubalheira do árbitro.

Escrever estas coisas pode ser perigoso, porque a vice-presidente do Parlamento Europeu, a social-democrata grega Eva Kaili, foi presa por dizer que o Catar é um exemplo no Mundo Árabe. Fez reformas políticas e sociais importantes, que outros países da região não fizeram e nunca farão, a não ser pela força.

Eu fiz a cobertura da Guerra Irão-Iraque, dos dois lados, graças ao meu amigo Otelo Saraiva de Carvalho que convenceu os seus amigos de Bagdade a concederem-me um visto de entrada, mesmo depois de ter estado várias vezes no Irão. Conheço bem toda a região do Golfo. 

Quando o estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA) decidiu destruir o Iraque a fim de roubar o petróleo eu fui cobrir o acontecimento. Fiz várias reportagens para o Jornal de Notícias, do Porto, onde então trabalhava. Escrevi que no Iraque existia o regime mais progressista do Médio Oriente. Nos outros países as mulheres não tinham direitos civis e políticos. No Iraque de Sadam Hussein existiam mulheres no seu governo. Mulheres deputadas. Um dia fui assistir a um debate parlamentar e uma deputada curda, declamou um poema em língua curda para justificar a resistência às potências ocidentais e indexar o petróleo iraquiano ao euro e não ao dólar.

A Universidade de Bagdade, a mais importante do Mundo Árabe, era dirigida por uma reitora. Os templos da Igreja Católica estavam abertos ao culto. O ministro das relações exteriores, Tareq Aziz, era uma figura importante da comunidade católica. Sadam Hussein acabou com a república islâmica e fundou a república socialista. Eu escrevia estas coisas todas. Um chefe de redacção no Porto dizia-me todos os dias: Andas a escrever o contrário do que escrevem os outros todos. Estamos a ser pressionados pelas embaixadas ocidentais.

O homem ganhava uma fortuna no circo porque era um dos poucos animais irracionais que falava. Não cedi. Mas quando saí de Bagdade e dei por terminado o meu trabalho na Guerra do Golfo, abandonei o jornal. Nunca mais tive entrada numa redacção em Portugal. Eles retaliam mesmo. 

Para memória futura publiquei um livro com todas as minhas reportagens no Iraque. Editora Centelha, de Coimbra. Título: “Eu Vi Bombardear Bagdade”. Não procurem porque está muito esgotado. Foi mais um salto mortal à frente. Não pensem que deixo intimidar.

*Jornalista

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