domingo, 29 de janeiro de 2023

A GUERRA NA UCRÂNIA PARA MANTER A UNIÃO EUROPEIA SOB TUTELA

Thierry Meyssan*

É difícil admitir, mas os Anglo-Saxões não o escondem. Parafraseando uma citação célebre do primeiro Secretário Geral da Aliança, A OTAN foi concebida para « conservar a Rússia fora, os Americanos dentro e a União Europeia sob tutela ». Não há nenhuma outra interpretação possível sobre a continuação das inúteis « sanções » contra Moscovo e dos vãos combates mortíferos na Ucrânia.

Faz já um ano que o Exército russo entrou na Ucrânia para aplicar a Resolução 2202 do Conselho de Segurança. Rejeitando este motivo, a OTAN considera, pelo contrário, que a Rússia invadiu a Ucrânia para a anexar. Nos quatro “oblasts”, os referendos de adesão à Federação da Rússia parecem confirmar a interpretação da OTAN, salvo que a História da Novorossia confirma a explicação da Rússia. As duas narrativas desenrolam-se em paralelo, sem jamais se tocarem.

Pela minha parte, tendo editado um boletim diário durante a guerra do Kosovo [1], recordo-me que a narrativa da OTAN à época era contestada por todas os agências de imprensa dos Balcãs, sem que eu tivesse meio de saber quem tinha razão. Dois dias após o fim do conflito, jornalistas dos países membros da Aliança Atlântica puderam ir até lá e constatar que haviam sido enganados. As agências de notícias regionais tinham razão. A OTAN não tinha parado de mentir. Mais tarde, quando eu era membro do governo líbio, a OTAN, que tinha um mandato do Conselho de Segurança para proteger a população, alterou-o a fim de derrubar a Jamahiriya Árabe Líbia, matando 120. 000 pessoas que ela era suposta proteger. Estas experiências mostram-nos que o Ocidente mente sem vergonha para encobrir as suas acções.

Hoje em dia a OTAN garante-nos que não está em guerra, uma vez que não colocou homens na Ucrânia. Ora, assistimos por um lado a gigantescas transferências de armas para a Ucrânia, para que os nacionalistas integralistas ucranianos [2], treinados pela OTAN, resistam a Moscovo (Moscou-br) e, por outro lado, a uma guerra económica, também ela sem precedentes, para destruir a economia russa. Tendo em conta a amplitude desta guerra por interpostos Ucranianos, o confronto entre a OTAN e a Rússia parece possível a qualquer instante.

Uma nova Guerra Mundial é, no entanto, altamente improvável, pelo menos a curto prazo: no entanto, os actos contradizem já a narrativa da OTAN.

A guerra continua e prossegue sem parar. Não que os dois campos estejam em paridade, mas porque a OTAN não quer enfrentar a Rússia. Vimos isso, há três meses, durante a Cimeira (Cúpula-br) do G20, em Bali. Com o acordo da Rússia, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, interveio nos debates por vídeo, desde Kiev. Ele pediu a exclusão da Rússia do G20, como acontecera com o G8 depois da adesão da Crimeia à Federação da Rússia. Para sua grande surpresa e dos membros da OTAN presentes na Cimeira, os Estados Unidos e o Reino Unido não o apoiaram [3]. Washington e Londres acordaram que havia uma linha a não ultrapassar. E por um bom motivo: as modernas armas russas são muito superiores às da OTAN, cuja tecnologia data dos anos 90. Em caso de confronto, não há qualquer dúvida que a Rússia certamente sofreria bastante, mas que ela iria esmagar os Ocidentais em poucos dias.

É à luz deste acontecimento que devemos reler aquilo que se passa à frente dos nossos olhos.

O afluxo de armas para a Ucrânia não passa de um engodo : a maioria dos materiais enviados não chega ao campo de batalha. Já havíamos anunciado que eles estariam a ser enviados para desencadear uma outra guerra no Sahel [4], o que o Presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, publicamente confirmou, atestando que muitas armas destinadas à Ucrânia estavam já em mãos dos jiadistas africanos [5]. Além disso, constituir um arsenal do género manta de retalhos, ao adicionar armas de idades e calibres diferentes, não serve para nada. Ninguém tem logística suficiente para abastecer os combatentes com munições múltiplas. Deve-se concluir, portanto, que estas armas não são dadas à Ucrânia para que ela vença.

O New York Times deu o alerta explicando que os fabricantes ocidentais da Defesa não conseguiam produzir armas e munições em quantidade suficiente. Os stocks (estoques-br) estão já esgotados e os exércitos ocidentais são forçados a dar o material que é indispensável à sua própria defesa. Isso foi confirmado pelo Secretário da Marinha dos EUA, Carlos Del Toro, que chamou a atenção face ao actual despojamento dos exércitos americanos [6]. Ele precisou que se o complexo militar-industrial dos EUA não conseguisse, em seis meses, produzir mais armas do que a Rússia, o exército dos EUA não mais seria capaz de cumprir a sua missão.

Primeira observação : mesmo que os políticos dos EUA queiram desencadear o Armagedom, eles não dispõem dos meios para o fazer nos próximos seis meses e não os terão provavelmente, de qualquer forma, no futuro próximo.

Avaliemos agora a guerra económica. Deixemos de lado a sua camuflagem sob uma linguagem castigadora : as « sanções ». Já tratei desta questão e sublinhei que não se tratava de decisões de um tribunal e que elas são ilegais face ao Direito Internacional. Vejamos as moedas. O dólar esmagou o rublo durante dois meses, depois ele voltou a descer para o valor que tinha de 2015 a 2020, sem que a Rússia tenha assumido empréstimos maciços. Por outras palavras, as pretensas « sanções » tiveram apenas um efeito insignificante sobre a Rússia. Elas perturbaram seriamente as suas trocas comerciais durante os dois primeiros meses, mas já não a incomodam hoje. Além disso, elas não custaram nada aos Estados Unidos e nada os afectaram.

Sabemos que, ao mesmo tempo que proíbem aos seus aliados importar hidrocarbonetos russos, os Estados Unidos importam-nos via Índia e reconstituem assim os stocks que haviam gasto durante os primeiros meses do conflito [7].

Pelo contrário, observamos um abalo na economia europeia que é forçada a pedir emprestado maciçamente para apoiar o regime de Kiev. Não dispomos nem de estatísticas sobre a extensão desses empréstimos, nem da identificação dos credores. É, no entanto, claro que os governos europeus fazem apelo a Washington no quadro da Lei de empréstimo-arrendamento dos EUA (Ukraine Democracy Defense Lend-Lease Act of 2022). Tudo o que os Europeus dão à Ucrânia tem um custo, mas este só será contabilizado depois da guerra. Só nesse momento a factura será apresentada. E ela será exorbitante. Até lá, tudo corre bem.

A sabotagem dos oleodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2 , em 26 de Setembro de 2022, não foi reivindicada após o golpe, mas antes pelo Presidente norte-americano, Joe Biden, em 7 de Fevereiro de 2022, na Casa Branca, na presença do Chanceler alemão Olaf Scholz. É certo que ele só se comprometeu a destruir o Nord Stream 2 em caso de invasão russa da Ucrânia, mas isso apenas porque a jornalista que o interrogava enquadou o assunto sem ousar imaginar que ele o poderia fazer também ao Nord Stream 1. Por esta declaração e mais ainda por esta sabotagem, Washington mostrou o desprezo em que tem o seu aliado alemão. Nada mudou desde que o primeiro Secretário-Geral da OTAN, Lord Ismay, declarava que o verdadeiro propósito da Aliança era o de « manter a União Soviética fora, os Americanos dentro e os Alemães sob tutela » (« keep the Soviet Union out, the Americans in, and the Germans down ») [8]. A União Soviética desapareceu e a Alemanha assumiu a chefia da União Europeia. Se ainda estivesse vivo, Lord Ismay provavelmente diria que o objectivo da OTAN é manter a Rússia fora, os Americanos dentro e a União Europeia sob tutela.

A Alemanha, para quem a sabotagem desses oleodutos é o golpe mais sério desde o fim da Segunda Guerra Mundial, encaixou-o sem pestanejar. Simultaneamente, ela engoliu o plano de Biden de salvação da economia dos EUA às custas da indústria automobilística alemã. A tudo isso, ela reagiu aproximando-se da China e evitando zangar-se com a Polónia, o novo trunfo dos Estados Unidos na Europa. Agora, ela propõe-se reconstruir a sua indústria desenvolvendo fábricas de munições para a Aliança.

Como consequência, a aceitação pela Alemanha da suserania dos Estados Unidos foi partilhada pela União Europeia que Berlim controla [9].

Segunda observação: os Alemães e os membros da União Europeia no seu conjunto tomaram nota de um declínio no seu nível de vida. Eles são, junto com os Ucranianos, as únicas vítimas da guerra actual e a ela se acomodam.

Em 1992, quando a Federação da Rússia acabava de nascer sobre as ruínas da União Soviética, Dick Cheney, então Secretário da Defesa, encomendou ao straussiano [10] Paul Wolfowitz um relatório que só nos chegou depois de amplamente manipulado. Os extractos do original, que a propósito publicaram o New York Times e o Washington Post, mostraram que Washington já não considerava a Rússia como uma ameaça, mas a União Europeia como uma potencial rival [11][11]. Podia ler-se neles :

« Muito embora os Estados Unidos apoiem o projecto de integração europeia, devemos tomar cuidado para prevenir a emergência de um sistema de segurança puramente europeu que minaria a OTAN e, particularmente, a sua estrutura de comando militar integrada » .

Por outras palavras, Washington aprova uma Defesa Europeia subordinada à OTAN, mas está pronta a destruir a União Europeia se esta pensar tornar-se uma potência política capaz de lhe fazer frente.

A actual estratégia dos Estados Unidos, que não enfraquece a Rússia, mas a União Europeia com o pretexto de lutar contra a Rússia, é a segunda aplicação concreta da Doutrina Wolfowitz. A sua primeira aplicação, em 2003, consistia em punir a França de Jacques Chirac e a Alemanha de Gerhard Schröder que se haviam oposto a que a OTAN destruísse o Iraque [12].

Foi exactamente o que disse o Chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, o General Mark Milley, durante uma conferência (coletiva-br) de imprensa após a reunião dos Aliados, em 20 de Janeiro, em Ramstein. Enquanto exigia que cada participante doasse armas a Kiev, ele reconheceu que « Este ano será muito, muito difícil expulsar militarmente as Forças Russas de cada centímetro quadrado da Ucrânia ocupada pela Rússia » ( « This year, it would be very, very difficult to militarily eject the Russian forces from every inch of Russian-occupied Ukraine » ). Por outras palavras, os Aliados devem sangrar-se, mas não há nenhuma esperança de ganhar, seja o que for, em 2023 à Rússia.

Terceira observação: esta guerra não é feita contra Moscovo, mas para enfraquecer a União Europeia.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II.

Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Imagem: Mas porque é que Josep Borrell, Charles Michel e Ursula von der Leyen, que foram condenados por corrupção e provaram a sua incompetência, se tornaram os líderes da União Europeia ? Para subscrever aquilo que lhes dita Jens Stoltenberg.

Notas:

1] Le Journal de la Guerre en Europe.

[2] “Quem são os nacionalistas integralistas ucranianos ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Novembro de 2022.

[3] “Zelensky armadilhado por Moscovo e Washington”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Novembro de 2022.

[4] “Preparam uma nova guerra para o após derrota face à Rússia”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 24 de Maio de 2022.

[5] «Muhammadu Buhari met en garde contre le flux d’armes de la guerre russo-ukrainienne en Afrique», Actu Niger, 30 novembre 2022.

[6] «Navy Secretary Warns: If Defense Industry Can’t Boost Production, Arming Both Ukraine and the US May Become ‘Challenging’», Marcus Weisgerber, Defense One, January 11, 2023.

[7] « India’s breaking all records for buying Russian oil, but who is the surprise buyer ? », Paran Balakrishnan, The Telegraph of India, January 16, 2022.

[8] Esta citação adorna orgulhosamente o site oficial da Aliança Atlântica.

[9] « Déclaration conjointe sur la coopération entre l’UE et l’Otan », Réseau Voltaire, 10 janvier 2023.

[10] "A Rússia declara guerra aos Straussianos”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Março de 2022.

[11] « US Strategy Plan Calls For Insuring No Rivals Develop », Patrick E. Tyler, and « Excerpts from Pentagon’s Plan : "Prevent the Re-Emergence of a New Rival" », New York Times, March 8, 1992. « Keeping the US First, Pentagon Would preclude a Rival Superpower » Barton Gellman, The Washington Post, March 11, 1992.

[12] « Instructions et conclusions sur les marchés de reconstruction et d’aide en Irak », par Paul Wolfowitz, Réseau Voltaire, 10 décembre 2003.

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