Aqui se defende que a crise no Governo é espelho distorcido de um terramoto social e político que não excita os telejornais. Num campo mediático em que se fala muitas vezes de corrupção para esconder a exploração de todos os dias.
Nuno Ramos de Almeida | AbrilAbril | opinião
Na conhecida banda desenhada do cowboy que disparava mais depressa que a sua própria sombra, Lucky Luke, há uma tira em que um par de vaqueiros passa ao pé do cowboy e do seu cavalo Jolly Jumper. Equídeo e cavaleiro disputam uma animada partida de xadrez. Um dos vaqueiros comenta impressionado: «Estás a ver aquele cavalo a jogar xadrez?», ao que o outro lhe responde calmamente, «não percebo a excitação, ele não joga assim tão bem».
Esta crise tem uma estrutura semelhante, em vez de nos escandalizarmos com uma situação generalizada, indignamo-nos com uma indemnização que não terá sido «assim tão bem».
O meio milhão de euros que a antiga secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, recebeu para sair da TAP é uma quantia escandalosa? É, sim senhor. Era bom é que a indignação não ficasse só por este caso, mas contestasse uma prática generalizada para administradores de grandes empresas, com os seus paraquedas dourados, ordenados e prémios sumptuosos.
No mundo do trabalho existem duas realidades que parecem ser de mundos distintos, mas pertencem ao mesmo planeta da exploração: por um lado, há accionistas e administradores das grandes empresas que ganham salários milionários; por outro lado, mais de 75% dos trabalhadores ganham menos de 1000 euros brutos por mês.
Vivemos num socialismo de ricos: os lucros são para eles, os prejuízos são pagos por nós.
Os contribuintes pagaram mais de 21 mil milhões de euros para os buracos e imparidades do sistema bancário, os administradores continuaram, apesar de ter os bancos falidos, a receber prémios anuais.
Os supermercados Pingo Doce têm como slogan: «sabe bem pagar tão pouco», uma intenção que visivelmente não se cumpre em relação ao CEO da Jerónimo Martins que é a proprietária da cadeia de supermercados: este ganha 262, seis vezes mais que o salário médio dos seus trabalhadores. Apenas em relação aos salários dos trabalhadores se aplica o «é bom pagar tão pouco».
A ópera bufa da sucessão de demissões de membros do governo do Partido Socialista mostra que existe incapacidade política crescente no executivo de António Costa. Uma semana depois, de ter garantido impante, em entrevista à revista Visão, sentadinho e contentinho no sofá, a fortaleza da maioria absoluta; estava a mendigar no parlamento, que o Presidente da República passasse a garantir a seriedade dos novos membros do governo, num processo que apelidou de vetting.
A crise da dança das cadeiras é uma espécie de reflexo desfocado da enorme crise social que o país vive, e a situação de crescente dificuldade em que estão a quase totalidade das pessoas que vivem em Portugal.
Um sintoma é sempre um sintoma, mas por vezes mascara a verdadeira causa da doença. Enquanto nos mergulham nos casos, casinhos, corrupções e arranjinhos que se multiplicam no espaço mediático, são ignoradas as políticas económicas de austeridade, aumento de taxas de juros e baixa dos salários que estão na origem da crise profunda em que vivemos.
O histerismo da corrupção é muito apetecível para a comunicação social, tem a dose de emoção que dá audiências. Politicamente serve para alimentar populismos de extrema-direita e esconder os problemas e as causas das desigualdades e do nosso crescente atraso económico.
Toda a corrupção é intolerável, mas o maior roubo no capitalismo é o próprio funcionamento dito «normal» do capitalismo. No fundo, as luzes dos escândalos do Governo servem aqui para disfarçar a escuridão das injustiças de todos os dias.
*Nota tradutória: O que é vetting?
Vetting é o processo de realizar uma verificação de antecedentes de alguém antes de oferecer-lhe emprego, conferir um prémio ou fazer uma verificação de factos antes de tomar qualquer decisão. Além disso, na coleta de informações, os ativos são examinados para determinar sua utilidade.
Imagem: Primeiro-ministro, António Costa, durante a discussão da moção de censura no parlamento / António Pedro Santos / Lusa
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