sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Angola | CANTAR O HOMEM E SUAS ARMAS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O destino dos seres humanos é realizar o impossível. Mas temos uma vida curta e quase nunca conseguimos sessa aproximação aos deuses. Graças ao doutor Lucas, meu professor no Liceu Salvador Correia, andei nas margens do impossível quando traduzi peças das Bucólicas, do poeta Virgílio. O mestre dizia-me que era impossível traduzir essa obra, que é marca do génio criativo da Humanidade. As Bucólicas só podem existir em Latim. Estuda, estuda. Aprende a fundo a língua e já consegues muito. Mas eu traduzi peças belíssimas das Bucólicas. Assim tentei i o impossível.

Nas Bucólicas aprendi que cantar e poetar é o essencial da natureza humana. E na Eneida percebi que chegar a Virgílio só mesmo deuses como Luís de Camões: Arma virumque cano! O poeta maior da Língua Portuguesa poetou assim: Cantando espalharei por toda a parte as Armas e os varões assinalados”. E modestamente concluiu: “Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.

Virgílio, depois das Bucólicas, escreveu a Eneida. Eis a obra fundamental da Humanidade! Cada verso, cada página são essência do nosso ADN. O poeta cantou as armas do varão Eneias. E quais eram? Combinar com sabedoria o passado, o presente e os sonhos do futuro. Consumir o alimento sagrado da Cultura aprendendo com a experiência dos nossos Mais Velhos. 

Mais o amor! Dido, a Rainha de Cartago, a primeiríssima soberana Africana, morreu de amores. Tanto amor morreu no mar da Líbia. Tanto luto na cidade de Cartago por Elissa de Tiro.

O poeta Sungwangongo Malaquias cantou gargalhadas com esgares de sangue à sua inditosa Pátria Angolana. Poetar é assim como cantar quando a alma se estilhaça em mágoas e tristezas. Por isso eu prefiro a doce medida velha: “Descalça vai para a fonte/Lianor pela verdura/Vai fermosa, e não segura”. E no fim: “Chove nela graça tanta/Que dá graça à fermosura”. Isto é poetar cantando na doce medida velha. O sol nasce no teu corpo, minha inditosa amada.

Helena e Domingas são gatuno/Roubam os pírus no sô Antero/Para dar aos namorados suinguistas. Canção carnavalesca inventada pelos alunos da minha turma no colégio do Uíge dirigido pelo padre Antunes, que me ensinou gramática e latim rosa rosae, rosam, rosarum rosis. Mário António cantou o homem nu sem armas: “A canção é sempre a mesma/Mesmos os fantasmas, meu amor:/Inútil o teu sol ante os meus olhos/Inútil teu calor nas minhas mãos”.

O Papa Francisco disse na República Democrático do Congo: Multinacionais, tirem as patas da RDC! Tirem as patas de África! Como ele é um poema de protesto em figura de gente, apresento-lhe estes versos de Agostinho Neto dedicados à Mamã África:

O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas

nos batuques choro de África
nas fogueiras choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de
todas as almas.

Atenção, muita atenção. O Papa Francisco é hoje o único líder mundial com cabeça, tronco e membros. O que, acreditem, nos tempos que correm faz a diferença entre a vida e a morte. Porque hoje ouvi um major general português dizer, com provas, que a III Guerra Mundial já começou. E está para breve o emprego de armas tácticas nucleares. 

Eu sabia que nunca terei repouso. Nasci na fornalha da II Guerra Mundial e o fogo continua. Não me vão dar tempo para cantar e poetar aos meus netos. E o Nataniel vai ouvir os estrondos das explosões, crescer com essa desumanidade e esquecer as minhas cantilenas de ninar. E esta trova:

Fala meu txinguvo/Bateria infinitiva de Sun Ra/Marca o compasso da dança:/Handjica nguvo iámi!

O mukixe remexe as ancas de palha/Os pés de Weza trepidam no chão/Mas seus seios estão hirtos/À espera de amamentar o nosso filho.

Fala bem alto meu txinguvo/Adoço o teu som com ulezo/Guardado na txipanga/ Que se cola aos panos das bailarinas.

Filho quando morre/Nunca mais volta ao colo da mãe/Não fica colado ao seu peito/Que ninguém me paralise o sangue/Nem com feitiço nem com medo/Handjica nguvo iámi!

Fala bem alto meu txinguvo/Contra o chicote e os fardados/Sou apaixonado pelo tambor/Não me paralisem as mãos/A minha aldeia é longe/Só a voz do txinguvo/Chega para além do rio:

Quem matou o nosso filho?/Handjica nguvo iámi! 

Chora por mim meu txinguvo/Todos te ouvem até no paraíso.

*Jornalista

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