terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Portugal | BARRICADAS NO PERDÃO

Como sempre, a reação da Igreja Católica aos horrendos crimes que também aqui foram perpetrados sob a sua guarda, conivência e propiciação é barricar-se no perdão a ver se passa. E tem passado.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Uma desculpa é pior que uma mentira, porque uma desculpa é uma mentira cautelosa. A frase é de João Paulo II, por acaso o papa que dirigia a Igreja Católica (IC) quando, no final do século XX e início do XXI, rebentaram os primeiros escândalos de abuso sexual de menores por padres - numa altura em que à frente do departamento do governo vaticano com a incumbência da investigação de tais crimes estava Joseph Ratzinger, depois Bento XVI.

Citei-a quando em 2018 escrevi sobre o "relatório da Pensilvânia", o documento tornado público em agosto desse ano e que relata sete décadas de crimes de abuso sexual a partir de testemunhos de vítimas e da análise dos arquivos de seis das oito dioceses daquele estado americano, numa investigação sob o comando do respetivo procurador-geral Josh Shapiro, hoje governador.

O documento, com divulgação ordenada pelo Supremo Tribunal do estado de 13 milhões de habitantes, revelando o nome de mais de 300 padres "predadores" e contabilizando mais de mil vítimas, foi, mesmo se revelações do mesmo tipo se sucediam há duas décadas, noticiado no mundo todo com choque. Não apenas pelos horríveis relatos de crimes nele contidos como pela descrição de um padrão endémico de abuso e de um "livro de estilo" de encobrimento seguido em todas as dioceses.

Esse mesmo livro de estilo, caracterizado pelo FBI a partir da análise dos arquivos eclesiásticos - nunca se falava, nos registos escritos, de violação nem de abuso, sendo usadas expressões "brancas" como "contacto inapropriado"; para inquirir de uma denúncia eram escolhidos clérigos sem qualquer experiência na condução de inquéritos de abuso sexual; se um padre acusado era retirado de um posto nunca se esclarecia a comunidade sobre as razões (e decerto não se avisava a comunidade para onde era "transferido"); nunca se informavam as autoridades judiciais -, foi observado em todos os países do mundo onde houve investigações, fossem elas conduzidas pelo Estado como na Pensilvânia, ou por comissões especiais (nomeadas pelos poderes públicos como na Austrália e Irlanda ou, como sucedeu em Portugal, França e Alemanha, pela própria Igreja Católica).

Esta uniformidade na forma de lidar com a denúncia de crimes não pode ser um acaso, como não é um acaso a prevalência desmesurada do mesmo tipo de crime nas inúmeras sucursais desta organização multinacional.

Um crime no qual o poder e a oportunidade são fatores determinantes, sendo que a oportunidade, ou seja, o acesso, é facultada pelo poder - um poder muito específico, o que advém da ligação a algo supra-humano, à transcendência. Como disse uma das vítimas da Pensilvânia, "era Deus que me estava a fazer aquilo".

Recordei essa frase quando ouvi, não contendo as lágrimas (vénia a quem os conseguiu ler sem quebrar), os relatos horríficos do relatório português.

Como recordei a frase papal que inicia este texto quando ouvi os bispos portugueses pedir desculpa usando "mas" - o "mas" de "não se pode generalizar" e o "mas" de "até permitimos esta investigação, olhem como somos admiráveis" -, um "mas" que vários comentadores fizeram igualmente questão de usar.

E também um "mas", perdoe-me Daniel Sampaio, na psiquiatrização do crime que estabelece quando afirma, em entrevista ao Público, que os abusadores "têm de ser tratados" e que a IC "alberga personalidades desviantes".

A ideia de que os criminosos são doentes e de que tais doentes vão por algum motivo "albergar-se" na instituição parece ser contraditada por uma revisão, publicada em 2013 e da autoria de um grupo de investigadores da universidade alemã de Ludwig-Maximilians, de todos os trabalhos científicos sobre abuso sexual no contexto da IC. Citando análises forenses a várias amostras de padres abusadores que concluíram que apenas uma minoria padecia de pedofilia (atração sexual por crianças), ou efebofilia (atração por adolescentes), e que a idade média do primeiro crime era bastante tardia (38,91 anos), a revisão sublinha elevada percentagem de religiosos com história de abuso considerados sexualmente e emocionalmente imaturos: 42,3%. Uma imaturidade relacionada, digo eu, com a exigência da castidade e a malsã obsessão com o sexo central na cultura católica, obsessão que o interdita aos que nas suas fileiras querem ingressar.

Não parece pois que seja tanto um caso de a IC atrair personalidades desviantes (o que também sucederá, eventualmente), mas de as moldar, de as fabricar. E de, uma vez fabricadas, não só lhes propiciar acesso e poder para predar quem menos capacidade tem de resistir e de denunciar - crianças e adolescentes -, como ao tomar conhecimento dos crimes ou da suspeita de que houve crime, silenciar, encobrir e permitir a sua continuação. Transmitindo assim para todos na organização a noção de que o crime não é grave; só a sua exposição pública, o seu reconhecimento perante as vítimas e a possível necessidade de reparação - ou não fosse a aceitação do abuso pela instituição outro dos fatores-chave identificados por quem estuda o fenómeno.

Uma aceitação que rima com negação - a negação contida não só nas declarações repugnantes quer de Manuel Linda quer de Manuel Clemente prévias à assunção pela Conferência Episcopal da necessidade de finalmente lançar uma investigação, como nas reações da hierarquia ao resultado desta. A negação, sempre, de que o problema é estrutural.

Curioso pois que em simultâneo a essa negação de um problema estrutural, de uma natureza criminosa, o governo da IC se venha precavendo pela calada, em alguns dos países mais pobres do mundo, contra investigações judiciais e reparações às vítimas. Fê-lo assinando concordatas nas quais se garante foro privilegiado, com obrigação de aviso à hierarquia caso se inicie uma investigação contra algum dos seus "servidores", declarando os seus arquivos "invioláveis" e assegurando que os seus bens não poderão ser reclamados para reparação das vítimas. Estratégias "obstrucionistas" da Santa Sé denunciadas, numa denúncia na qual ninguém parece ter reparado, em 2021 por relatores especiais para os direitos humanos junto da ONU, que chamaram na mesma altura a atenção para o lobbying da IC contra as propostas de que o crime abuso sexual de menores tenha prazos de prescrição mais longos.

Não é decerto a conduta de uma organização arrependida e que busca a redenção na verdade e na justiça; não é contrição que vemos nos pedidos de perdão, mas disfarce, cálculo, determinação na sobrevivência a todo o custo. A arrogância suprema de quem acha que se se safou até agora se safará sempre - e decerto não crê em justiças divinas, ou sequer num poder maior que o seu, muito menos na justiça humana ou na coragem dos governos.

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