segunda-feira, 3 de abril de 2023

Angola | DESAFOROS INSANÁVEIS E IDENTIDADE USURPADA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Eurico Correia Manuel José Gonçalves “China” foi distinguido com a Ordem dos Combatentes da Liberdade 1º Grau como consta no Decreto Presidencial ontem divulgado pelos Media públicos. Pensei que este condecorado fosse primo do Rafael Marques e criado do Miala por isso João Lourenço o agraciou. Fica tudo em casa e em família. Procurei esclarecer e afinal há no documento assinado pelo Chefe de Estado um erro gravíssimo. Se o técnico que nomeou um morto administrador de empresa pública foi para a rua, quem elaborou a lista das e dos condecorados tem de seguir o mesmo caminho.

Eurico Manuel Correia Gonçalves é o Comandante Eurico, assassinado por Nito Aves, Bakalof e outros golpistas no dia 27 de Maio de 1977. Isso de “China” é só para os amigos, não num Decreto Presidencial. A malta do Liceu Salvador Correia pôs-lhe esse nome porque tinha os olhos rasgados à oriental. Mas quando desertou do Exército Português (era alferes miliciano) e se juntou à guerrilha, ele recusou usar nome de guerra. Assumiu por inteiro a sua opção e a sua verdadeira identidade. Em casa chamavam-lhe Kiko. Eu também, porque frequentei muito o seu doce lar.

O Comandante Eurico era o Comissário Político da Frente Norte e David Moisés (Ndozi) era o chefe máximo das I e II Regiões Político-Militares do MPLA. Continuou a exercer essas funções quando o Comandante Bolingô assumiu a liderança, porque Ndozi foi para a União Soviética formar a IX Brigada. Em 1976, Agostinho Neto, o Comandante Xyetu e o Comandante Iko Carreira tiraram-no de Cabinda e ele veio para Luanda integrar o Estado-Maior Geral das FAPLA com a difícil missão de transformar as forças guerrilheiras num Exército Nacional. 

Na hora dos patenteamentos os “comandantes” da I Região queriam ser todos majores, tenentes-coronéis e coronéis. Alguns, como Nito Alves, declararam que tinham aderido à Luta Armada de Libertação Nacional na I Região (Dembos). Mas na data da adesão as forças guerrilheiras tinham abandonado as suas posições e resguardaram-se em esconderijos nas matas impenetráveis de Nambuangongo. Corria o ano de 1968. 

O comandante da I Região, César Augusto (Kiluanje), ordenou que os guerrilheiros passassem para posições defensivas, depois dos estragos da grande ofensiva das tropas portuguesas que meteu tropas especiais helitransportadas, tropa de infantaria, artilharia e aviação. 

A Operação Nova Luz foi a última grande ofensiva das forças ocupantes sobre a I Região do MPLA. O alto comando das tropas de ocupação usou pela primeira vez os aviões “FIAT” e os bombardeamentos destruíram todos os meios de vida com napalm e armas químicas (desfolhantes). Levaram as populações civis para as Sanzalas da Paz (campos de concentração).

Só Kiluanje era Comandante de Coluna. Por isso, nos patenteamentos apenas ele podia ser oficial superior. O Comandante Eurico recusou “vender” patentes aos impostores e por isso foi assassinado no dia 27 de Maio de 1977 por Bakalof e Nito Alves. No dia 4 de Abril, graças ao Presidente João Lourenço, assassinos e assassinados ficam com a mesma condecoração: Ordem dos Combatentes da Liberdade 1º Grau. Pode? Na cabeça dos mobutistas claro que sim. Mas para disfarçar, alteraram a identidade do Comandante Eurico. Ele foi um dos signatários da Proclamação da União dos Escritores Angolanos. Consta lá o seu nome com o pseudónimo literário, Poeta Emanuel Corgo. Vou traduzir. Emanuel é E de Eurico e Manuel. Corgo é Cor de Correia e Go de Gonçalves. Usurpar a identidade de um Herói Nacional é grave.

Resolvido o problema da identidade usurpada vamos aos desaforos. Isaías Samakuva era cabo da tropa portuguesa. Na UNITA foi promovido a “oficial de ligação” com os racistas sul-africanos. No final de Maio de 1991, o chefe dos serviços secretos do regime der apartheid, Samakuva e Abílio Camalata Numa movimentarem os seus melhores combatentes e as melhores armas, inclusive os mísseis Stinger, para bases secretas no Cuando Cubango. Mais de 20.000 homens! 

O acordado em Bicesse exigia que todas as tropas de Savimbi fossem para os acantonamentos. Mas só enviaram militares recrutados à pressa, sem experiência militar, e armas obsoletas. Porque a teoria dos sul-africanos era esta: Se a UNITA ganhar as eleições, tudo bem. Se perder, vamos dizer que houve fraude e tomamos o poder pela força. Mal soou o apito, as tropas escondidas saíram e em poucas semanas ocuparam quase todo o país.

Samakuva é um dos responsáveis pela guerra depois das eleições. Agora foi condecorado por João Lourenço. Por ter lutado pela Independência Nacional? não foi. Nessa altura era cabo da tropa portuguesa. Por ter lutado pela paz e a reconciliação nacional também não. Escondeu um grande exército para destruir a paz e sabotar a reconciliação. Lutou de armas na mão contra a democracia. Está visto que a sua condecoração foi para humilhar quem verdadeiramente lutou e merece a Ordem da Paz e da Concórdia, 1º Classe.

Samakuva foi colocado ao nível de António Jacinto ou Luandino Vieira. Joaquim Kapango foi assassinado às ordens de Savimbi na cidade de Huambo. Os assassinos entraram num avião português que iria levá-lo na ponta aérea para Lisboa. Saiu do campo de refugiados montado no quartel do Regimento de Infantaria, escoltado por tropas especiais de Portugal. Depois de se acomodar no seu lugar foram embora. Deram o sinal e a tropa savimbista foi buscá-lo à aeronave. Sofreu terríveis torturas e fuzilaram-no. Foi condecorado com a mesma ordem de Chivukuvuku o assassino às ordens de Savimbi.

Anália Vitória Pereira foi condecorada. Seu marido Carlos Simeão (Manolo) não existe. Mas ele foi o fundador do partido PLD. Os nossos escritores que penaram no Tarrafal (Luandino e Jacinto) são condecorados. António Cardoso, o último prisioneiro a ser libertado do campo de concentração, já depois do 25 de Abril de 1974, foi ignorado. Chico Simons foi condecorado. Artur Arriscado, Artur Neves, Manuel Berenguel, Luísa Fançony foram ignorados. O jornalista Rui de Carvalho foi distinguido com a mesma Ordem do deputado da UNITA Justino Pinto de Andrade. Qual foi a lógica? Quando elaboraram as listas tinham bebido litradas de pakuka? Estavam drogados?

Gabriela Antunes, Luísa Rogério, Rosa Cruz e Silva foram colocadas ao nível de Miraldina Jamba. Parece mentira mas é verdade.

Dibala, Dimuka, Dimbondwa e outros heroicos guerrilheiros da Frente Leste foram equiparados ao assassino do 27 de Maio de 1977 Luís dos Passos. Daniel Chipenda, na sua qualidade de agente duplo, fez tudo para destruir a Frente Leste do MPLA com a chamada Revolta do Leste. Fez um atentado contra o Comandante Bolingô e Aníbal de Melo. Preparou um atentado contra Agostinho Neto que só falhou porque um arrependido denunciou a operação. Em 1974, criou o Esquadrão Chipenda, unidade militar ao serviço da África do Sul e da CIA. 

Após a tomada de posse do Governo de Transição, foi ele que rebentou com o processo de descolonização em Luanda. Ainda em 1974 vivia mais tempo na África do Sul do que em Portugal onde se “exilou”. Antes de Jonas Savimbi, já ele tinha alugado as suas armas ao regime racista de Pretória. É condecorado no dia 4 de Abril por João Lourenço!

O Comandante Tetembwa foi atraído a uma armadilha na Frente Leste por um agente duplo que abastecia os guerrilheiros do MPLA. Depois desta traição o “cantineiro” foi transferido para Benguela. Após a Independência Nacional, o combatente traído encontrou aquele que o entregou ao inimigo, numa rua da Cidade das Acácias Rubras! Foi preso e levado para Luanda. Ouvi da sua boca como foi montada a armadilha e por quem. Lamento informar os condecoradores que acima desse agente duplo estava Bionifácio Kinda, o Comandante Kantiga! Vai ser condecorado com a mesma distinção dos Heróis Nacionais Rui de Matos (Maio) e Margoso. É muita bebedeira!

Basta! Deixei propositadamente para o fim o pior e mais grave. Na esperança de que ninguém tenha chegado a esta parte do texto. As regras são muito claras. A informação é organizada em cascata. O mais importante vem nos primeiros parágrafos. O menos importante no fim. Eu inverti para ninguém ler o mais vergonhoso.

As condecorações são entregues no 4 de Abril, Dia da Paz. Um dos episódios mais marcantes na guerra após as eleições foi o cerco à cidade do Cuito. O grande Herói foi o General Kussumua. Os condecoradores despacharam-no com uma medalha de segunda classe, abaixo de alguns subordinados que também foram condecorados. Teve mais sorte do que o General João de Matos que foi banido pelos condecoradores. 

O artífice do 4 de Abril (Dia da Paz) foi ignorado. Já morreu há muito tempo e passaram milhares de anos desde que saiu do Poder dando lugar a João Lourenço. Seu nome é José Eduardo dos Santos. Avisou Savimbi de que era bem-vindo à democracia. Mas se continuasse na sua carreira de bandoleiro, ou se rendia ou morria. Morreu. Mas quando os operacionais das FAA e da Polícia Nacional se preparavam para desfechar o golpe final nos sicários da UNITA que ainda estavam vivos, o Comandante em Chefe ordenou: Nem mais um tiro. Parem a operação imediatamente. Assim chegámos ao Dia da Paz. Os condecoradores baniram o Presidente José Eduardo dos Santos.

Espero que a regra se cumpra e ninguém tenha lido esta parte do texto. É imperdoável o que fizeram os condecoradores ao Comandante em Chefe. Depois destas listas das condecorações não fica pedra sobre pedra.

*Jornalista

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