terça-feira, 23 de maio de 2023

ALVO: ÁFRICA DO SUL

João Melo* | Diário de Notícias | opinião

O embaixador americano em Pretória, Reuben Briget, que está em fim de missão, acusou no dia 11 deste mês a África do Sul de fornecer armas à Rússia, apesar da sua declarada posição de neutralidade na atual guerra da Ucrânia. Segundo o diplomata, armas e munições teriam sido carregadas num cargueiro russo que, em dezembro de 2022, atracou perto da cidade do Cabo, na maior base naval do país, Simon"s Town.

Bridget fez essas declarações num encontro com jornalistas sul-africanos. Questionado na altura sobre a fiabilidade das suas afirmações, garantiu que eram "sólidas". Acrescentou ele: "Gostaríamos que a África do Sul começasse a praticar a sua política de não-alinhamento". Esta última declaração é um verdadeiro exercício de hipocrisia explícita, conhecidas que são as pressões do Ocidente Alargado para que os países do Sul que ousam manter uma posição independente relativamente à guerra da Ucrânia abdiquem da mesma, passando a alinhar com a perspetiva da grande aliança EUA/OTAN/UE. O presidente da Assembleia da República Portuguesa, Santos Silva, por exemplo, prometeu ao líder ucraniano trabalhar no sentido de mudar as posições dos países africanos sobre esse tema. Saudades dos tempos do diktat colonial?

A reação das autoridades sul-africanas às declarações do embaixador americano fez-se sentir imediatamente. Um dia depois das mesmas, o Departamento de Relações Internacionais e Cooperação (DIRCO, em inglês) chamou Reuben Briget e comunicou-lhe o desagrado do país pelas suas declarações proferidas na véspera. Na avaliação do referido departamento, tais declarações divergem do espírito das relações "cordiais e mutuamente vantajosas" existentes entre a África do Sul e os EUA. De acordo com o comunicado, o embaixador terá reconhecido que ultrapassou as linhas vermelhas impostas pelo cargo que ocupa, tendo-se desculpado por isso "perante o governo e o povo sul-africanos".

Entretanto, o presidente Cyril Ramaphosa criou uma comissão de inquérito independente, presidida por um juiz reformado, a fim de averiguar as alegações de Reuben Briget, prometendo que todos aqueles que, eventualmente, tiverem desrespeitado a lei serão punidos. Note-se que a África do Sul é conhecida por ser um dos países do mundo com regras mais estritas para vender armas a países estrangeiros. O processo é administrado pelo Comité de Controlo da Convenção Nacional de Armas, criado ao abrigo da própria constituição do país.

Por outro lado, no dia 15, o Partido Comunista da África do Sul (SACP, em inglês) acusou os Estados Unidos de espionagem contra o país. Principal parceiro do ANC na coligação que governa a África do Sul desde 1994 (o outro é a confederação sindical COSATU), o SACP interrogou-se: "Como se explica que um embaixador que representa um estado estrangeiro no nosso país tenha feito essas afirmações?". A suspeita faz todo o sentido, se nos lembrarmos, por exemplo, das revelações de Julian Assange sobre os atos de espionagem praticados pelos EUA contra líderes internacionais, as quais são o motivo por que ele continua encarcerado até hoje numa prisão britânica.

Para que conste, relembro aqui a síntese do presidente Ramaphosa acerca da posição do seu país em relação à guerra da Ucrânia: "A realidade é que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e as tensões que lhe estão subjacentes não serão resolvidos por meios militares. Ele deve ser resolvido politicamente. A África do Sul não tomará partido numa disputa entre potências globais. Não aceitamos que a nossa posição não-alinhada favoreça a Rússia acima de outros países. Tão pouco aceitamos que isso coloque em risco as nossas relações com outros países".

Ou seja, recusar-se a embarcar no forçado unanimismo em relação à guerra na Ucrânia e defender a busca de uma solução política para o problema NÃO significa um alinhamento incondicional com a Rússia, que, reitere-se, cometeu um erro crasso ao invadir a Ucrânia (outras potências o têm feito, sabe-se, mas isso não desculpa nem uns nem outros).

O facto é que a posição da África do Sul incomoda os defensores da ordem unipolar liderada pelos EUA, os quais não podem sequer usar contra Pretória o argumento de que se trata de uma ditadura ou autocracia, uma vez que a sua reputação democrática é inquestionável (na verdade, a África do Sul é muito mais democrática do que a Ucrânia). Na mesma situação estão outras duas importantes nações do Sul Global, o Brasil e a Índia, mas, aparentemente, o elo mais fraco será a África do Sul. É por aí que o complexo EUA/OTAN/EU quer começar a minar.

* Escritor e jornalista angolano. Diretor da revista África 21

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