segunda-feira, 22 de maio de 2023

Angola | Câmara Pires o Militante Anarquista -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Agostinho Neto lançou uma ofensiva diplomática mundial quando foi eleito, em Kinshasa, líder do MPLA. Os perdedores da eleição, unidos à volta de Viriato da Cruz, iniciaram de imediato acções contra a direcção que chegaram ao extremo da dissidência. O grupo maoista aderiu à FNLA que acabava de anunciar o Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE). O chefe dos contestatários pouco tempo esteve em Kinshasa, partindo para Paris e mais tarde para a República Popular da China onde faleceu. Outros ficaram e causaram muitos danos ao movimento popular e revolucionário.

Mário Pinto de Andrade, primeiro apoiante da candidatura de Agostinho Neto à liderança do MPLA, partiu para um périplo que incluiu países africanos e europeus, com a missão de mobilizar apoios à luta do MPLA. Mas o clima de contestação à direcção de Agostinho Neto cedo o afastou dessa missão e da militância activa no movimento. 

Agostinho Neto tomou em mãos a missão de levar a mensagem da nova liderança ao mundo para conquistar novos amigos e aliados. Foi a sua primeira grande vitória enquanto presidente do MPLA. Maria Eugénia Neto conta como foi a chegada do casal e os dois filhos ainda bebés à capital do Congo:

“Quando chegámos a Léopoldville estavam lá o Viriato da Cruz e o médico Eduardo dos Santos, na mesma casa. Estava também o médico Américo Boavida e outros, devidamente instalados. Não viviam em palácios nem palacetes, mas viviam com as mínimas condições. Todos sabiam que Neto voltaria com a família, que incluía duas crianças ainda bebés. Mas não foram capazes de arranjar uma casa para nós, por muito humilde que fosse. 

Agostinho Neto estava a suscitar reacções estranhas. Eu percebi logo que a sua liderança ia ser difícil e para ter êxito, teria que remover muitos obstáculos externamente, mas também no interior do movimento. Todos sabiam que o líder tinha ido a Rabat apenas para ir buscar a família, todos sabiam que tínhamos duas crianças de tenra idade, mas ninguém se lembrou de nos arranjar um alojamento. Ficámos na casa do Luís Azevedo, num colchão no chão. Apanhei um paludismo que ia morrendo.

Numa pequena divisão, que nem era um quarto, vivia o meu marido, o Mário Jorge, a Irene e eu. Mais tarde lá nos arranjaram um quartito independente. Não disse nada ao meu marido, achei melhor o silêncio. Mas ele percebeu essa afronta. E não poucas vezes teve de dizer a membros da direcção do MPLA, alguns seus amigos, que ele era o líder e a luta de libertação tinha que ser a primeira prioridade de todos”. 

Na sua ofensiva diplomática Agostinho Neto teve um apoio de peso, Inocêncio Câmara Pires. Foram os dois a Roma mobilizar apoios da esquerda italiana à causa da Luta de Libertação do Povo Angolano e tiveram um êxito estrondoso. 

Esta figura ímpar da História Contemporânea de Angola está soterrada no esquecimento daqueles que ajudou a libertar das garras do colonialismo. Foi o primeiro e único representante do MPLA na Europa, devidamente credenciado por Agostinho Neto. Todos os outros que se reclamavam dessas funções não passavam de impostores. Câmara Pires era tio do comandante Jorge Morais (Monty) que se distinguiu na guerrilha da Frente Leste e foi casado com Rute Neto. Depois da Independência Nacional integrou o Governo da República Popular de Angola.

Câmara Pires nasceu a 4 de Março de 1898, em Luanda. Mestiço, formado em medicina, casado com uma francesa, residia em Paris quando Agostinho Neto o mobilizou para a luta de libertação nacional. 

Estudante de Medicina em Portugal integrou a Federação Anarquista Regional Portuguesa (FARP) e a Federação Anarquista Ibérica (FAI), mantendo correspondência com outros seguidores em todo mundo, como é o caso de Emma Goldman. A ascensão do fascismo em Portugal com o regime do Estado Novo, em 1926, levou-o a exilar-se em Espanha. 

Com o deflagrar da Guerra Civil, foi enviado pela Confederação Nacional do Trabalho para Marselha com o objectivo de constituir um núcleo de ajuda aos anarquistas durante o conflito. Contornando os entraves legais franceses, criou então o Centro de Expansão Comercial Internacional (CECI), uma companhia comercial que servia como fachada para a acção de auxílio. Através da CECI chegavam a Espanha mantimentos e, no sentido inverso, era enviado para o território francês material de propaganda favorável aos republicanos espanhóis. 

Em França, Câmara Pires foi um dos responsáveis pelo jornal Rebelião, que também servia de veículo de defesa da República espanhola. Com o fim da Guerra Civil, foi encarregado de receber a família de Jaime de Morais na fronteira, impedindo a sua ida para campos de concentração. Permaneceu em solo francês até 1939, ano em que partiu para o Brasil. Em 10 de Agosto de 1941, obteve a autorização de permanência definitiva naquele país. 

No Rio de Janeiro, passou a integrar o movimento anarquista brasileiro, sem deixar de apoiar os exilados portugueses nas suas iniciativas contra o regime de Lisboa, em especial, aos seus antigos companheiros de Espanha, os "Budas”. Escrevia para revistas, utilizando a chancela da “Agência Editorial Lisboa Rio de Janeiro”, criada pelo próprio Câmara Pires, chegando a publicar artigos no Boletim da Casa de Portugal, órgão mais conservador, através deste recurso. 

A sua maior participação continua a ser como militante anarquista, participando na criação do jornal anarquista Ação Directa, em 1947, em território brasileiro. Regressou a Paris nos anos 50, onde, com o mesmo espírito combatente, apoiou os movimentos independentistas africanos. Na capital francesa, a sua casa passou a ser o local de reunião dos membros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e dos nacionalistas africanos de Moçambique (FRELIMO) e da Guiné (PAIGC). 

Sócrates Dáskalos nas suas memórias descreve assim Câmara Pires: "Foi uma alegria conhecer o Castro Soromenho, um mais velho cuja vida em Paris não era fácil, que nos encorajou e encaminhou para o então primeiro e único embaixador de Angola na Europa, o inesquecível Câmara Pires, inesquecível para todos os angolanos que naquela época procuravam no exílio a única possibilidade de sobreviver continuando a consagrar-se à luta pela libertação da sua terra. Naquela altura eu já era quarentão mas senti inveja de um Câmara Pires que já teria os sessenta e tais e parecia comportar-se como um jovem, sacrificava-se como um jovem sabendo previamente que não iria beneficiar da sua dedicação e sacrifício. 

Câmara Pires era um homem fora de série, um africano mestiço, muito culto, habituado ao convívio com a grande burguesia europeia, que cultivava a ironia, sabia ser severo quando necessário e sabia atender a juventude negra, branca ou mestiça, todos “revolucionários” que chegavam a Paris e precisavam do apoio do “embaixador” da Rua Hypollite Mandron n.º 7. Resumindo, era um homem vivido, generoso sem ser ingénuo, que sentia o momento que passava de grandes transformações em África e na sua terra. Na sua casa de Paris arranjava-se sempre comida e dormida nas grandes aflições. 

O Câmara Pires não era comunista nem socialista declarado, mas era um homem aberto às ideias de esquerda e como tinha boas relações em Paris safava muita gente de problemas delicados. Era um militante activo do MPLA, sem ficha nem estatutos. Em 1963, quando o MPLA atravessou uma das suas grandes crises, o Câmara deixou o conforto da sua casa de Paris para ir a Itália defender a causa que ele considerava a mais válida. As causas válidas têm sempre alguns homens sãos e honestos a defendê-las, tal como o “velho” Câmara. 

Muitos foram os que se sentaram à sua mesa... E os que se limitavam a aproveitar-se da sua pessoa, comendo e bebendo e mesmo dormindo e não sabiam reconhecer a sua generosidade e sacrifício, fugindo mesmo a lavar os pratos, eram os oportunistas que ficavam no ficheiro da sua memória para não repetirem o abuso. “Faire la vaisselle” (lavar a loiça), servia de teste para a avaliação dos pequenos oportunistas. 

O Paulo Jorge viveu bastante tempo em casa do Câmara Pires, lavou lá muita loiça e conheceu-o melhor do que eu. Para terminar este parêntesis não posso deixar de lembrar esta frase do Câmara Pires que ele me confidenciou num momento de calma na sua casa de Paris: “Oh! Dáskalos, tu acreditas que estes comunistas serão capazes de governar Angola?”. Não revelo o que respondi para que não se pense que eu fui um dos videntes mais acertados deste mundo.” 

Jacinto Veloso, que foi oficial piloto aviador da Força Aérea Portuguesa, aderiu à luta armada da FRELIMO. No seu livro “Memórias em Voo Rasante” também invoca Câmara Pires com estas palavras: “Na prática, era ele quem recebia toda a gente na nossa situação, angolanos, moçambicanos e outros, que iam ter com ele por recomendação política”. 

Edmundo Rocha no livro "Angola. Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano” refere-se a Câmara Pires afirmando que a sua casa “era passagem obrigatória em Paris”. Trata-o como “o militante anarquista do MPLA”.

Maria Eugénia Neto no livro “Memórias de Jenny: a noiva do vestido azul”, de Artur Queiroz, conta um episódio pitoresco. Quando chegou a Paris com Agostinho Neto, o primeiro contacto foi com Câmara Pires que ela não conhecia. O militante anarquista do MPLA soube que a esposa do seu amigo e líder Agostinho Neto estava sem roupa. “Foram os dois comprar um vestido para mim e tiveram bom gosto”.

Paulo Jorge, o grande diplomata do MPLA nesses anos da Luta Armada de Libertação Nacional, teve sempre o apoio do embaixador do movimento na Europa, Inocêncio Câmara Pires. Sei que trocou correspondência com Artur Pestana (Pepetela) quando este saiu de Paris e foi para Argel. Pepe, não queres escrever nada sobre o militante anarquista do MPLA?

Inocêncio Câmara Pires faleceu em Paris, no dia 8 de Abril de 1966, estava a guerrilha da Frente Leste no auge. Mas o MPLA ainda ficou com alguns militantes anarquistas, dois, talvez três. Uma multidão sempre a navegar pelos mares da liberdade, com sérios riscos de afundar mas sem medo do naufrágio. 

* Jornalista

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