quinta-feira, 25 de maio de 2023

Portugal | O ENGENHO NO CAOS

Cristina Figueiredo, editora de política da SIC | Expresso (curto)

António Costa surgiu ontem na Assembleia da República aparentemente muito preocupado com o “vírus do populismo”. “A melhor forma de combater o populismo é não imitarmos o populismo”, atirou ao líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento. E numa resposta a Rui Tavares, que lhe chamara a atenção para o risco do país se tornar rapidamente “num lamaçal, num charco cada vez mais pequeno” perante as polémicas que têm marcado a governação no último ano, o primeiro-ministro socorreu-se de um livro publicado em Portugal este mês (“Os engenheiros do caos”, do ensaísta italiano Giuliano da Empoli) para admoestar o deputado do Livre pelo uso de “vocabulário” que, como se poderá ler na obra citada, “é uma forma essencial de difusão do vírus do populismo”.

Não li (ainda, mas fiquei com vontade) este “Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. Mas fui a correr ler a sinopse, que começa por esta impressiva citação de Mark Twain: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo no mesmo tempo que a verdade leva para calçar seus sapatos.”

Depois, voltei às minhas notas sobre o debate desta quarta-feira para poder escrever aqui sobre as mais de três horas em que Costa esteve sob o escrutínio dos deputados - muito apertado na primeira hora, mais lasso nas seguintes - e resistiu estoicamente a esclarecer o que a oposição mais queria saber mas que, do seu ponto de vista, são “só pormenores que animam uma novela”: afinal, foi ou não o secretário de Estado adjunto António Mendonça Mendes quem sugeriu ao ministro das Infraestruturas e/ou à sua chefe de gabinete que ligassem para o SIS na noite em que os serviços secretos foram ter com Frederico Pinheiro, o adjunto exonerado de João Galamba, para recuperar o tal computador contendo “informação sensível”?

“Cinjamo-nos aos factos”, respondeu o primeiro-ministro por mais do que uma vez. E os factos são, mais uma vez do seu ponto de vista: houve um desaparecimento de documentos classificados (“a palavra que eu utilizaria seria roubo mas cabe às autoridades competentes qualificarem”), manda o protocolo que esse desaparecimento deva ser comunicado e que as autoridades ajam rapidamente. “Não vejo qualquer tipo de ilegalidade”, disse, reiterando que a chefe de gabinete de João Galamba “fez bem” em ligar para o SIS.

Já antes do debate com o PM, o partido do Governo chumbara o pedido da Iniciativa Liberal para a audição de Mendonça Mendes na Comissão de Assuntos Constitucionais (levando os liberais a avançar para uma audição potestativa). Após o debate, o PS reiterou a indisponibilidade para satisfazer a curiosidade da oposição e indeferiu os requerimentos para que António Costa, Mendonça Mendes, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, e os responsáveis da PSP, SIS e SIRP fossem ouvidos no âmbito da comissão de inquérito à TAP. Dia 14 de junho serão discutidas as propostas (de IL e Chega) para constituição de uma comissão de inquérito à atuação dos Serviços de Segurança neste caso e tudo leva a crer que também não passarão.

Regresso aos “engenheiros do caos” e à frase de Mark Twain. Empoli podia ter citado outros clássicos. Por exemplo, Jonathan Swift: “O meio mais eficaz para destruir uma mentira consiste em opor-lhe uma outra mentira”. Ou Nicolau Maquiavel: “os homens são tão simples e tão obedientes às necessidades do momento que quem engana encontra sempre quem se deixe enganar”.

OUTRAS NOTÍCIAS, CÁ DENTRO…

Apesar de a questão da intervenção do SIS no ministério das Infraestruturas ter dominado boa parte do debate com o primeiro-ministro, houve mais assuntos em discussão (nomeadamente as últimas notícias sobre o processo Tutti Frutti e o alegado envolvimento dos ministros das Finanças e do Ambiente) e o Expresso faz-lhe um resumo aqui. Mas mal o plenário terminou as atenções logo (se) voltaram ao lugar que tem feito a infelicidade do Governo nos últimos tempos: a comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP, com a audição da antiga chefe de gabinete do então ministro Pedro Nuno Santos. Maria Araújo assegurou que o valor da indemnização pago a Alexandra Reis não foi definido pelo Ministério mas partiu de uma recomendação da anterior CEO, Christine Ourmières- Widener. E contou que o ex-ministro das Infraestruturas nem participou das negociações, em janeiro de 2022: a partir do dia 17 de janeiro esteve ausente (primeiro por razões de saúde, depois devido à campanha eleitoral) e só voltou após as eleições de 30 de janeiro de 2022.

Hoje, às 14h00, é a vez de João Weber Gameiro, ex-CFO da TAP; e, às

17h00, é ouvida a atual diretora jurídica da TAP, Manuela Simões.

Ricardo Salgado viu agravada pela Relação a pena de prisão efetiva que já tinha recebido da primeira instância: o antigo banqueiro terá de cumprir oito anos, em vez de seis pelos crimes de abuso de confiança na transferência de 10,7 milhões de euros de entidades do Grupo Espírito Santo para a sua esfera privada (crimes saídos da Operação Marquês, que investiga José Sócrates). A defesa de Salgado, no entanto, já anunciou que vai recorrer novamente da decisão (agora para o Tribunal Constitucional) por entender que está em causa a dignidade humana do arguido, “cidadão com 78 anos (a um mês de fazer 79), que padece de comprovada e grave doença de Alzheimer”.

O Presidente da República promulgou ontem ao final do dia o diploma que substitui o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) pela Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA), enviado para Belém há duas semanas. Mas a promulgação seguiu com recados (mais uma vez).

… E LÁ FORA

É uma notícia que vem lá de fora mas que respeita à vida cá dentro. Bruxelas pressiona Portugal a atualizar rapidamente o Programa de Recuperação e Resiliência para que possa encaixar um adicional de 3,3 mil milhões de euros.

Morreu Tina Turner, aos 83 anos. Miss Hot Legs, retirada dos palcos há mais de 20 anos, “brilhará eternamente entre as estrelas”, segundo a agência espacial NASA, a exprimir assim a consternação (aliás generalizada) pela morte de mais uma lenda da música, uma mulher carismática e lutadora, cuja história foi recentemente contada num documentário que pode ser visto na HBO Max.

Lê-se e não se acredita: o Governo grego proibiu a entrega de comida a todos os migrantes de Lesbos que já tenham recebido resposta ao seu processo de asilo. “Seja positiva ou negativa [essa resposta], têm de procurar os seus próprios meios de subsistência. Só que isso é impossível quando não se pode sair do mesmo lugar”, conta a Ana França.

FRASES (especial António Costa, ontem, no debate parlamentar)

“Quando desaparece um documento classificado, devem as autoridades comunicar? Sim. As autoridades devem agir? Sim. Alguém deu ordens, orientações? Não. Tudo o resto são pormenores para animar uma novela”
Em resposta a Rui Rocha (Iniciativa Liberal)

“Não há debate em que eu venha aqui que não peça a demissão de um ministro. Por si já todos estavam demitidos, o que muito nos honra”
Para André Ventura (Chega)

“Quando usamos as palavras 'lamaçal' e 'charco' estamos mesmo a ser contaminados. Vacine-se rapidamente”
Para Rui Tavares (Livre)

“Foi com muito gosto que partilhei consigo um momento histórico da esquerda portuguesa em que encerrámos um muro que nunca, nunca mais será reerguido entre a esquerda portuguesa”
Para Catarina Martins, que deixa a liderança do BE no domingo

PODCASTS A NÃO PERDER (sugestões da equipa multimédia)

O arraso de Cavaco, a verdade de Galamba e o jogo de Costa, com memórias à mistura. O que não sai da cabeça de João Galamba não é o mesmo que não sai na cabeça nesta Comissão Política que começa por comentar o arraso que Cavaco Silva deu ao Governo. O ex-Presidente voltou a iniciativas partidárias para sugerir a demissão ao primeiro-ministro no fim de uma semana dominada pela audição de Frederico Pinheiro, Eugénia Correia e João Galamba na Comissão Parlamentar de Inquérito.

Ditadura militar em Portugal: o tempo em que Salazar chegou a ministro. Em A História Repete-se, Henrique Monteiro e Lourenço Pereira Coutinho conversam sobre o pronunciamento militar de 28 de maio de 1926, ponto de partida para uma ditadura militar pouco estudada e que durou cerca de 7 anos. Este foi o tempo em que Salazar chegou a ministro das finanças e depois acumulou poder, cultivando habilmente o mito de ser providencial. Pelo meio, a pergunta que fica: seria inevitável que a ditadura militar tivesse evoluído para o Estado Novo?

Eduardo Lourenço: “Olho para a minha vida com o espanto de que ela não possa recomeçar”. Na semana em que faria 100 anos, relembramos a conversa íntima do filósofo com Bernardo Mendonça, em A Beleza das Pequenas Coisas. Falou do seu grande amor, o gosto pela música, pelo cinema e comentou o país, a Europa e o mundo com uma lucidez, rapidez de raciocínio e vigor raros. Lourenço, que foi distinguido em 2016 com o prémio Vasco Graça Moura e era por altura da sua morte conselheiro de Estado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, revelou ainda um encantamento com Catarina Martins e Mariana Mortágua, “pequenos Fidel Castros”.

O QUE ANDO A LER…

De vez em quando é, de facto, preciso voltar aos clássicos e à sua intemporalidade. Funcionam como uma espécie de porto de abrigo da voragem destes dias, em que a velocidade de saída de novos títulos, novos autores, novas temáticas nos deixa irremediavelmente desatualizados, por mais que tentemos manter-nos a par (nem de propósito, a Feira do Livro de Lisboa abre hoje portas; fica no parque Eduardo VII até 7 de junho). Foi talvez por isso que há dias peguei em “A criação do mundo”, romance autobiográfico do homem que nasceu Adolfo Correia da Rocha, em 1907, em Trás Os Montes, e que ficou conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga - foi o primeiro Prémio Camões da literatura em português. Não o li “de uma assentada”, como promete o escritor no prefácio, texto onde escreve estas frases só óbvias para quem não se der ao trabalho de pensar no que está a ler: “Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas.” Ainda estou a lê-lo, “degustando” esta tranquilidade que nem sempre se encontra na literatura contemporânea .

… E A VER

Tenho bilhetes para o início de junho para “A Peça para Dois Atores”, do norte-americano Tennessee Williams (autor de “Um Elétrico Chamado Desejo”), tradução e encenação de Diogo Infante, com Miguel Guilherme e Luísa Cruz (dois grandes atores cujo trabalho acompanho desde há muito) nos papéis de Felice e Clare, dois irmãos forçados a representar uma peça em que se confundem com as personagens que interpretam: uma peça de “teatro dentro do teatro”, como descreve o crítico teatral do Expresso João Carneiro. Pode ser vista no Teatro da Trindade Inatel até 25 de junho (de quarta a sábado às 21h, domingo às 16h30). Por coincidência, Bernardo Mendonça conversou esta semana com Miguel Guilherme no podcast A Beleza das Pequenas Coisas. Para ouvir (no site do Expresso ou nas plataformas áudio) já esta sexta-feira.

E o Curto fica por aqui. Amanhã, não esqueça, há Expresso nas bancas (já hoje, a partir das 23h, para os assinantes digitais), mas não precisa de esperar até lá para ir sabendo das últimas, é só clicar aqui ou aqui. Tenha um dia bom.

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