Cristina Figueiredo, editora de política da SIC | Expresso (curto)
António Costa surgiu ontem na
Assembleia da República aparentemente muito preocupado com o “vírus do
populismo”. “A melhor forma de combater o populismo é não imitarmos o populismo”, atirou
ao líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento. E numa resposta a Rui
Tavares, que lhe chamara a atenção para o risco do país se tornar
rapidamente “num lamaçal, num charco cada vez mais pequeno” perante
as polémicas que têm marcado a governação no último ano, o primeiro-ministro
socorreu-se de um livro publicado em Portugal este mês (“Os engenheiros do
caos”, do ensaísta italiano Giuliano da Empoli) para admoestar o deputado do
Livre pelo uso de “vocabulário” que, como se poderá ler na obra citada, “é
uma forma essencial de difusão do vírus do populismo”.
Não li (ainda, mas fiquei com vontade) este “Os engenheiros do caos: como as
fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados
para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. Mas fui a correr ler a
sinopse, que começa por esta impressiva citação de Mark Twain: “Uma
mentira pode dar a volta ao mundo no mesmo tempo que a verdade leva para calçar
seus sapatos.”
Depois, voltei às minhas notas sobre o debate desta quarta-feira para poder
escrever aqui sobre as mais de três horas em que Costa esteve sob o escrutínio
dos deputados - muito apertado na primeira hora, mais lasso nas seguintes - e
resistiu estoicamente a esclarecer o que a oposição mais queria saber mas que,
do seu ponto de vista, são “só pormenores que animam uma novela”: afinal, foi ou não o secretário de Estado adjunto António Mendonça
Mendes quem sugeriu ao ministro das Infraestruturas e/ou à sua chefe
de gabinete que ligassem para o SIS na noite em que os serviços secretos foram
ter com Frederico Pinheiro, o adjunto exonerado de João Galamba, para recuperar
o tal computador contendo “informação sensível”?
“Cinjamo-nos aos factos”, respondeu o primeiro-ministro por mais do que uma
vez. E os factos são, mais uma vez do seu ponto de vista: houve um
desaparecimento de documentos classificados (“a palavra que eu utilizaria seria
roubo mas cabe às autoridades competentes qualificarem”), manda o protocolo que
esse desaparecimento deva ser comunicado e que as autoridades ajam
rapidamente. “Não vejo qualquer tipo de ilegalidade”, disse, reiterando
que a chefe de gabinete de João Galamba “fez bem” em ligar para o
SIS.
Já antes do debate com o PM, o partido do Governo chumbara o pedido da
Iniciativa Liberal para a audição de Mendonça Mendes na Comissão de Assuntos
Constitucionais (levando os liberais a avançar para uma audição potestativa). Após o debate, o PS reiterou a
indisponibilidade para satisfazer a curiosidade da oposição e indeferiu os requerimentos para que António Costa,
Mendonça Mendes, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro,
e os responsáveis da PSP, SIS e SIRP fossem ouvidos no âmbito da comissão de
inquérito à TAP. Dia 14 de junho serão discutidas as propostas (de IL e Chega)
para constituição de uma comissão de inquérito à atuação dos Serviços de
Segurança neste caso e tudo leva a crer que também não passarão.
Regresso aos “engenheiros do caos” e à frase de Mark Twain. Empoli podia
ter citado outros clássicos. Por exemplo, Jonathan Swift: “O meio mais
eficaz para destruir uma mentira consiste em opor-lhe uma outra mentira”. Ou
Nicolau Maquiavel: “os homens são tão simples e tão obedientes às
necessidades do momento que quem engana encontra sempre quem se deixe enganar”.
OUTRAS NOTÍCIAS, CÁ DENTRO…
Apesar de a questão da intervenção do SIS no ministério das Infraestruturas ter
dominado boa parte do debate com o primeiro-ministro, houve mais assuntos em
discussão (nomeadamente as últimas notícias sobre o processo Tutti Frutti e o alegado envolvimento dos
ministros das Finanças e do Ambiente) e o Expresso faz-lhe um resumo aqui. Mas mal o plenário terminou as atenções logo (se)
voltaram ao lugar que tem feito a infelicidade do Governo nos últimos
tempos: a comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP, com a audição da
antiga chefe de gabinete do então ministro Pedro Nuno Santos. Maria
Araújo assegurou que o valor da indemnização pago a Alexandra Reis não foi
definido pelo Ministério mas partiu de uma recomendação da anterior CEO,
Christine Ourmières- Widener. E contou que o ex-ministro das Infraestruturas nem participou das
negociações, em janeiro de 2022: a partir do dia 17 de janeiro esteve
ausente (primeiro por razões de saúde, depois devido à campanha eleitoral) e só
voltou após as eleições de 30 de janeiro de 2022.
Hoje, às 14h00, é a vez de João Weber Gameiro, ex-CFO da TAP; e, às
17h00, é ouvida a atual diretora
jurídica da TAP, Manuela Simões.
Ricardo Salgado viu agravada pela Relação a pena de prisão efetiva que já
tinha recebido da primeira instância: o antigo banqueiro terá de cumprir oito anos, em vez de seis pelos
crimes de abuso de confiança na transferência de 10,7 milhões de euros de
entidades do Grupo Espírito Santo para a sua esfera privada (crimes saídos da
Operação Marquês, que investiga José Sócrates). A defesa de Salgado, no
entanto, já anunciou que vai recorrer novamente da decisão (agora para o
Tribunal Constitucional) por entender que está em causa a dignidade humana do
arguido, “cidadão com 78 anos (a um mês de fazer 79), que padece de
comprovada e grave doença de Alzheimer”.
O Presidente da República promulgou ontem ao final do dia o diploma que
substitui o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) pela Agência
Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA), enviado para Belém há duas
semanas. Mas a promulgação seguiu com recados (mais uma vez).
… E LÁ FORA
É uma notícia que vem lá de fora mas que respeita à vida cá dentro. Bruxelas pressiona Portugal a atualizar rapidamente
o Programa de Recuperação e Resiliência para que possa encaixar um
adicional de 3,3 mil milhões de euros.
Morreu Tina Turner, aos 83 anos. Miss Hot Legs,
retirada dos palcos há mais de 20 anos, “brilhará eternamente entre as
estrelas”, segundo a agência espacial NASA, a exprimir assim a consternação
(aliás generalizada) pela morte de mais uma lenda da música, uma mulher
carismática e lutadora, cuja história foi recentemente contada num documentário que pode ser visto na HBO Max.
Lê-se e não se acredita: o Governo grego proibiu a entrega de comida a
todos os migrantes de Lesbos que já tenham recebido resposta ao seu
processo de asilo. “Seja positiva ou negativa [essa resposta], têm de
procurar os seus próprios meios de subsistência. Só que isso é impossível
quando não se pode sair do mesmo lugar”, conta a Ana França.
FRASES (especial António Costa, ontem, no debate parlamentar)
“Quando desaparece um documento classificado, devem as autoridades comunicar?
Sim. As autoridades devem agir? Sim. Alguém deu ordens, orientações? Não. Tudo
o resto são pormenores para animar uma novela”
Em resposta a Rui Rocha (Iniciativa Liberal)
“Não há debate em que eu venha aqui que não peça a demissão de um ministro. Por
si já todos estavam demitidos, o que muito nos honra”
Para André Ventura (Chega)
“Quando usamos as palavras 'lamaçal' e 'charco' estamos mesmo a ser contaminados.
Vacine-se rapidamente”
Para Rui Tavares (Livre)
“Foi com muito gosto que partilhei consigo um momento histórico da esquerda
portuguesa em que encerrámos um muro que nunca, nunca mais será reerguido entre
a esquerda portuguesa”
Para Catarina Martins, que deixa a liderança do BE no domingo
PODCASTS A NÃO PERDER (sugestões
da equipa multimédia)
O arraso de Cavaco, a verdade de Galamba e o jogo de Costa, com memórias à
mistura. O que não sai da cabeça de João Galamba não é o mesmo que não sai na
cabeça nesta Comissão Política que começa por comentar o arraso que
Cavaco Silva deu ao Governo. O ex-Presidente voltou a iniciativas partidárias
para sugerir a demissão ao primeiro-ministro no fim de uma semana dominada pela
audição de Frederico Pinheiro, Eugénia Correia e João Galamba na Comissão
Parlamentar de Inquérito.
Ditadura militar em Portugal: o tempo em que Salazar chegou a ministro. Em A História Repete-se, Henrique Monteiro e Lourenço Pereira
Coutinho conversam sobre o pronunciamento militar de 28 de maio de 1926, ponto
de partida para uma ditadura militar pouco estudada e que durou cerca de 7
anos. Este foi o tempo em que Salazar chegou a ministro das finanças e depois
acumulou poder, cultivando habilmente o mito de ser providencial. Pelo meio, a
pergunta que fica: seria inevitável que a ditadura militar tivesse evoluído
para o Estado Novo?
Eduardo Lourenço: “Olho para a minha vida com o espanto de que ela não possa
recomeçar”. Na semana em que faria 100 anos, relembramos a conversa íntima do
filósofo com Bernardo Mendonça, em A Beleza das Pequenas Coisas. Falou do seu grande amor, o
gosto pela música, pelo cinema e comentou o país, a Europa e o mundo com uma
lucidez, rapidez de raciocínio e vigor raros. Lourenço, que foi distinguido em
2016 com o prémio Vasco Graça Moura e era por altura da sua morte conselheiro
de Estado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, revelou ainda um encantamento
com Catarina Martins e Mariana Mortágua, “pequenos Fidel Castros”.
O QUE ANDO A LER…
De vez em quando é, de facto, preciso voltar aos clássicos e à sua
intemporalidade. Funcionam como uma espécie de porto de abrigo da voragem
destes dias, em que a velocidade de saída de novos títulos, novos autores,
novas temáticas nos deixa irremediavelmente desatualizados, por mais que
tentemos manter-nos a par (nem de propósito, a Feira do Livro de Lisboa abre
hoje portas; fica no parque Eduardo VII até 7 de junho). Foi talvez por isso
que há dias peguei em “A criação do mundo”, romance autobiográfico do
homem que nasceu Adolfo Correia da Rocha, em 1907, em Trás Os Montes, e que
ficou conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga - foi o primeiro Prémio
Camões da literatura em português. Não o li “de uma assentada”, como
promete o escritor no prefácio, texto onde escreve estas frases só óbvias para
quem não se der ao trabalho de pensar no que está a ler: “Todos nós
criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que
partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos
complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou
comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a
nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como
criaturas.” Ainda estou a lê-lo, “degustando” esta tranquilidade que nem
sempre se encontra na literatura contemporânea .
… E A VER
Tenho bilhetes para o início de junho para “A Peça para Dois Atores”, do
norte-americano Tennessee Williams (autor de “Um Elétrico Chamado
Desejo”), tradução e encenação de Diogo Infante, com Miguel Guilherme e Luísa
Cruz (dois grandes atores cujo trabalho acompanho desde há muito) nos
papéis de Felice e Clare, dois irmãos forçados a representar uma peça em que se
confundem com as personagens que interpretam: uma peça de “teatro dentro do teatro”, como descreve o
crítico teatral do Expresso João Carneiro. Pode ser vista no Teatro da Trindade
Inatel até 25 de junho (de quarta a sábado às 21h, domingo às 16h30). Por
coincidência, Bernardo Mendonça conversou esta semana com Miguel Guilherme no
podcast A Beleza das Pequenas Coisas. Para ouvir (no site do Expresso ou nas plataformas
áudio) já esta sexta-feira.
E o Curto fica por aqui. Amanhã, não esqueça, há Expresso nas bancas (já hoje,
a partir das 23h, para os assinantes digitais), mas não precisa de esperar até
lá para ir sabendo das últimas, é só clicar aqui ou aqui. Tenha um dia bom.
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