sábado, 17 de junho de 2023

Angola | Erros de Honorato e uma Invocação Trágica – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O chefe estava a maquetar uma página e olhou-me de esguelha, enfadado, quando lhe disse que era o novo repórter informador. Sem tirar os olhos do desenho mandou-me ao banco de urgência do Hospital Maria Pia. Vai saber o que se passa por lá e quando voltares, contas-me. Lá fui. Cabeças partidas, ossos igualmente, facadas, agressões à paulada, bebedeiras, putas agredidas por cientes caloteiros vi lá de tudo. Quando regressei fui ter com o chefe, já sentado na sua secretária. Conta lá. Eu contava e ele escrevia. Era essa a vida dos repórteres informadores. Cavavam as notícias e os redactores escreviam.

Queres ser jornalista? Quero, chefe. Então só tens que saber viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. Quando um dia te sentares à máquina para escrever a notícia, nunca te esqueças que não há adjectivos e a palavra “não” é proibida. Só contamos o que aconteceu. O que não acontece é para amadores. O chefe era Acácio Barradas, um senhor fino, com ar de galã do cinema.  

Com meu pai aprendi a viver com honra e dignidade. Ele era um exemplo. Ainda jovem foi preso pela PIDE e torturado. Não quebrou. Não cedeu. Cuspiu na cara dos torturadores como eu um dia hei-de cuspir na cara do Satula, o verme indeciso entre o cadáver e a lixeira. Era miúdo e fomos a Portugal. A minha tia Feliciana foi mostrar-me a prisão do Porto onde enclausuraram e torturaram meu Pai. Na rua ouvimos um homem cantar. E depois um assobio melodioso. Imaginei que era meu pai que estava lá dentro e chorei. Mas aprendi que ninguém cala o canto e o assobio de um homem livre. Honra e dignidade estavam garantidas.

Tata Tuma ensinou-me a dissimular a vida. Esconder os sentimentos, os desejos, os sonhos. Ninguém me ia apanhar nas curvas. E quanto a adjectivos, nunca consumi. Morador da Kapopa que vivia numa casa de pau a pique não valia nada. Nem uma palavra bonita entrava na sua vida. Cresci assim, sem adjectivos nem elogios. Era o burro da escola. Os colegas chamaram-me Kitó. E assim fiquei. Um dia destes o Luís Filipe Colaço telefonou-me. Kitó, estás bom? Tive um baque no coração. Já ninguém me chama Kitó. Será um morto ressuscitado? Era o meu camarada Colaço, director do DIP do MPLA. Um combatente da nossa luta. Deve ser o único que ainda me trata assim.

Por ele soube que o médico Tozé Miranda continua na linha da frente lutando pela honra e a dignidade. Também soube que o engenheiro Rangel está em forma. Ele era o nosso ANGOTIC. Garantiu as telecomunicações à luta pela honra e a dignidade. Estamos vivos camaradas! Milagre mais milagroso não há. Estamos ao nível do Papa Francisco.

Acácio Barradas nunca me poupou. Quando estava bem-disposto chamava-me macaco. Se estava chateado dizia tunda! Tunda! Mas eu ficava. Com ele aprendi a organizar o espaço e a hierarquizar a informação na página. Quando escrevia da mesma maneira houvesse mortos e feridos ou apenas desordeiros detidos ele dizia-me: Põe calor nessa merda! E rasgava a peça que lhe entregava. Eu escrevia de novo com tempero. Um dia destes vou publicar um livro intitulado “Crónicas com Sal e Jindungo” em homenagem ao meu saudoso mestre.

Ao longo da minha vida profissional dei formação a muitos candidatos a jornalistas. Pela primeira vez vou revelar o programa. Isto do jornalismo é coisa para loucos incuráveis e desenganados da vida. Basta um átomo de inteligência para perceber isso logo no primeiro dia de Redacção ou de Estúdio (enlouqueci na Rádio e nunca mais recuperei). Por isso, jornalistas aprendizes ou seniores querem fugir desse inferno. Estão sempre a fugir. Eu não quero ficar sozinho e empurro-os para a notícia. Não os deixo desertar. Portanto, não sou mestre nenhum. Apenas um empurrador.

O meu regresso ao Jornal de Angola foi um erro grave. Mas tive grandes alegrias. Rapidamente constatei que os recursos humanos tinham elevadíssimo potencial. Os jornalistas seniores ou principiantes tinham grandes qualidades para a profissão. O melhor de todos era Honorato Silva mas estava sempre a fugir. Eu empurrava, empurrava. E venci. Para não pensar que o seu esforço foi em vão, disse-lhe que um dia ia ser director do jornal por mérito próprio. Em Angola temos grandes quantidades de ministros, directores, secretários de estado, de estrado, de secretaria, chefes, presidentes. Por mérito próprio são poucos. Honorato está nesse grupo restrito. Espero que não o castiguem por siso.

Não sou mestre de coisa nenhuma, apenas vaticinei que um colega de profissão, cujas qualidades conhecia, ia ser director do jornal por mérito próprio. Estão corrigidos os erros.

Numa crónica, Honorato Silva invocou o Albino Camana. Tanta dor! Eu vivia num prédio antigo, pé direito alto, daqueles com escada de quilómetro. Quando à noite saía do jornal ia a pé para casa. As prostituas que atacavam entre o Hotel Globo e a esquina da calçada da Neográfica (revista Notícia) acompanhavam-me até à entrada do edifício, não fosse algum bandido fazer-me mal. Eram muito gentis. As minhas barbas brancas inibiam-nas de me oferecerem os seus serviços sexuais. Morava sozinho e na porta ao lado viva a Família Camana.

Em pouco tempo fui adoptado. Tinham cuidados comigo que nunca tive na vida. Gostavam de mim. Apaparicavam-me. Eu que odeio o conceito família, a sua função monetária e repressiva, senti-me feliz. Quase me converti. O Albino Camana era o director gráfico do Jornal de Angola. Um profissional de categoria mundial. Sempre que fazíamos páginas especiais ou suplementos, pedia-lhe para caprichar. Ele criava autênticos monumentos gráficos. Para mobilizar juventude da reportagem, pedia ao Albino uma paginação especial para determinadas peças. No dia seguinte explicava aos repórteres a dimensão estética e plástica da informação na página.

O Albino era meu irmão, meu cúmplice, meu mestre na organização do espaço e sobretudo meu amigo. Quando faleceu quis ir a Luanda abraçar a minha Família. Não tive coragem. Portanto já sabem. Temos de saber viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. Virar as costas aos adjectivos.  Nunca escrevam a palavra “não” nas notícias. E que nunca falte a coragem. À tribo do Jornalismo Desportivo (é um mundo à parte…) no Jornal dos Desportos desejo muitos, muitos êxitos. Confiem no Honorato que ele é dos melhores de todos nós.

Não sou um estranho. Trabalhei no jornal O Jogo com o Nuno Brás, um monumento da Narração Desportiva, tão bom como o Manuel Rabelais. E com o Manuel Berenguel fiz o programa A Voz Livre do Povo. Sou mesmo da tribo! Tomem nota dos nossos maiores no passado: Aníbal de Melo, Luís Alberto Ferreira, Rebelo Carvalheira e Rui de Carvalho.

*Jornalista

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