sábado, 17 de junho de 2023

Angola | Os Jacarés e a Fotografia na Gaveta – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O combate à corrupção é contra bichos ferozes como marimbondos e caranguejos, que se alimentam de dinheiro subtraído dos cofres do Estado. Crime mais criminoso não há. Nos dias em que consigo pensar assaltam-me ideias terríveis. Eles deviam ter as chaves da casa forte onde é guardado o kumbu. Ou enfiavam na cabeça uns panos pretos com aberturas nos olhinhos e na boca, pegavam na “Aka” e assaltavam quem tinha a missão de guardar a massa. Houve violência desumana, correu sangue aos borbotões, torturas para obter o segredo do cofre. Se foi assim ficou tudo no segredo dos deuses.

O sistema precisa da corrupção como de pão para a boca. Se o dinheiro não circula em grandes quantidades, se não muda de mãos, a economia de mercado morre de morte matada. Nas eleições gerais de 1992 o eleitorado angolano plebiscitou a morte da democracia popular e do socialismo. Caucionou 100 por cento a democracia representativa e o capitalismo, pai de todos os bichos, de marimbondos aos jacarés que vivem do lodo e lixo concentrado no fundo dos rios. Até pedregulhos engolem! Sem lixo, sem lodo, sem porcaria, jacaré morre de fome.

É altura de cortar a ração aos jacarés porque estes são mais perigosos e predadores do que marimbondos e caranguejos. Os nossos saltaram dos rios para a política e a comunicação social. Vivem da mentira, da falsificação, da calúnia, da manipulação. Assaltam a História roubando-lhe os factos. Roubam a honra de vivos e mortos para ficarmos todos ocos e zumbis. Manipulam a realidade apresentando factos passados como se tivessem acontecido hoje. Nada melhor do que exemplos.

Os jacarés que vendem opiniões nos Media (até nos públicos!) dizem que Angola é independente há 48 anos. O MPLA governa há 48 anos. E os problemas continuam por resolver. Nada mudou. Somos um país rico e o povo continua pobre. Há quem chame a isto populismo. Eu chamo-lhe desonestidade intelectual. Baixeza moral. Banditismo mediático.

No dia seguinte ao 11 de Novembro de 1975 Angola ainda não era um país. A colónia também já não existia. Tinha sido desmantelada até ao último tijolo, propositadamente, pela potência colonial e pelos invasores estrangeiros, entre os quais os fascistas do Exército de Libertação de Portugal liderados pelo coronel Santos e Castro. Este era desertor do Exército Português para repor o regime colonialista e as colónias. Não ficou pedra sobre pedra. A administração pública, a todos os níveis, ficou sem recursos humanos. O país chamado Angola nasceu do zero. Os seus dirigentes só ficaram com os mortos para enterrar e as famílias para consolar.

Portugal existe há 880 anos. Ainda tem problemas de pobreza e fome para resolver. Uma alta percentagem da população activa não tem emprego. Uma quota ainda maior não tem habitação digna. Andaram séculos a roubar os angolanos. Foram os primeiros marimbondos das riquezas do Povo Angolano. E estão muito bem vistos por João Lourenço!

A França tem mais de mil anos. A Primeira República já conta 231 anos! A Revolução Francesa iluminou o ocidente com os valores da liberdade, igualdade e fraternidade. Os “flics” dão porrada a quem se manifesta. Os velhos lutam como leões pelas suas reformas porque a fraternidade foi à vida. Os trabalhadores reclamam a igualdade que se evaporou há muitos anos. Mais de dez milhões de franceses vivem na pobreza. Mas na Alemanha são 13 milhões.   Em Espanha, onde João Lourenço prestou vassalagem ao maoista banqueiro Durão Barroso, 825.000 pessoas estão na “situação de pobreza grave”, números oficiais.

Os jacarés acham que Angola já devia ser a Suécia de África porque o MPLA governa há 48 anos e Angola é um país rico. Metam nessas cabeças ocas, de uma vez por todas, que Angola é um país paupérrimo. Não tem massa crítica. A investigação científica é incipiente. Importamos quase tudo o que comemos. Gastamos milhares de milhões na importação de combustíveis sendo uma potência petrolífera.

No fatídico ano de 1977 Arménio Ferreira, líder do Órgão Coordenador do MPLA para a Europa, mandava todos os sábados um cabaz de comida para o seu camarada, amigo e colega de curso, Agostinho Neto. Sabem quem é? Isso mesmo, o Presidente da República Popular de Angola. O Tita (Correia da Silva) e o Pitra faziam as compras. O Pombeiro, técnico da TAAG, mandava a encomenda para Luanda, todos os sábados.

O Tita era uma espécie de secretário-geral do comité. E decidiu que devíamos enviar para Luanda uma análise da situação política em Portugal e na Europa. Com o recorte das notícias mais importantes. Esse material seguia em pastas para cada membro do Bureau Político do MPLA e para o Ministério das Relações Exteriores. Recortávamos as notícias mais importantes e fazíamos fotocópias desse material. Eu também escrevia a análise. O Dr. Arménio Ferreira pagava tudo do seu bolso! Quando recebia a conta da papelaria que nos vendias jornais, revistas, pastas e resmas de papel, reclamava. Isto custa muito dinheiro!

O Tita falava com ele e explicava que era importante esse trabalho. Arménio Ferreira respondia: Eu acho que ninguém lê esses calhamaços que vocês mandam! 

Um sábado, já corria o ano de 1978, a TAAG cancelou o voo por razões técnicas. Nem foram os frescos para Agostinho Neto dar de comer à família nem as pastas com o material informativo. Lúcio Lara, com a sua voz de Baixo, telefonou-me reclamando a sua pasta. José Eduardo telefonou reclamando da falha. Paulo Jorge xingou-me: Falhas quando precisamos de ti! Manuel Pedro Pacavira pediu-me para mandar imediatamente o material. Estás a boicotar?

O meu saudoso amigo e camarada Manecas Balonas, nesse tempo o único médico anestesista no Hospital de São Paulo (Américo Boavida) recebia todos os sábados um cabaz que seu pai me entregava. O seu menino ficou com fome. Telefonou a xingar-me: Ó jacaré do Luinga! Andas a embebedar-te em vez de ajudares os camaradas! 

O Pombeiro conseguiu mandar tudo na primeira oportunidade. Mas as alfaces estavam murchas. Esta era a fragilidade do nosso país em 1977.

Esta parte vão gostar. Parte da direcção do MPLA partiu voluntariamente para o exílio instigada pela massa militante. Porque se ficassem em Angola iam todos presos. Agostinho Neto foi preso em Luanda e deportado para Lisboa. Em Portugal, ainda estudante, foi preso e para o vergar, enviaram-no para o Porto onde não tinha ninguém que o visitasse na cadeia ou o apoiasse. Mas ganhou um grande advogado. António Macedo, um antifascista e anticolonialista irredutível. Ficaram amigos, toda a vida! Agostinho Neto não se exilou. Foi preso. E fugiu da prisão. Durante a fuga quase naufragou no Mediterrâneo como hoje acontece com milhares de africanos. Fugiu ele, a esposa, Maria Eugénia, e os filhos ainda bebés Mário Jorge e Irene Alexandra. O comandante da frágil embarcação era o oficial da Armada Portuguesa José Nogueira. O imediato era Jaime Serra, dirigente comunista.

Mutos anos mais tarde António Macedo, presidente do Partido Socialista Português, resolveu escrever as suas memórias. Pediu-me para o ajudar. Nessa altura eu era repórter no Jornal de Notícias do Porto. Antes de ir trabalhar, passava por casa dele e recolhia os factos. Escrevia directamente na máquina. No dia seguinte apresentava-lhe as declarações, dactilografadas. Ele lia, fazia as alterações que entendesse e no dia seguinte entregava-lhe o material corrigido pronto a publicar. Fizemos isto dois meses e centenas de páginas depois.

Quando terminámos o original, António Macedo disse que queria escrever uma obra mais pequena que incluía apenas as memórias que tinha de outros políticos. Iniciámos imediatamente o trabalho. O livro chama-se “Na Outra Margem de Abril” e inclui um texto de Almeia da Santos e outro meu. Estávamos na reta final quando Macedo foi visitado por Mário Soares, então Presidente da República.

No escritório onde trabalhávamos as paredes estavam cheias de fotografias. No centro o retrato oficial do Presidente Agostinho Neto. Depois fotos com Samora Machel e outros Chefes de Estado. Uma foto com os seus colegas de escritório (A Toca) entre os quais o Dr. Carlos Cal Brandão. Mário Soares viu todas as fotos com curiosidade. Por fim disse a António Macedo: Tu não tens aqui a minha foto! E o ancião respondeu: A tua está na gaveta da secretária. Só a tiro de lá quando tu tirares o socialismo da gaveta!

A penúria em Angola continuou ao ritmo da guerra, após o falecimento de Agostinho Neto. Nos anos 80 José Récio e o seu colaborador Barradas levavam todos os dias comida para o Presidente José Eduardo sustentar a família. A guerra mergulhou Angola na fome e na miséria. Ninguém escapava. Guerra. Sabem o que é jacarés esfaimados? Nos 48 anos que Angola leva de vida temos de contar com os efeitos devastadores do ano e meio de guerra antes do dia 11 de Novembro de 1975 mais 14 anos até ao Acordo de Nova Iorque. E a rebelião armada entre 1992 e 2002. E nunca esquecer os anos de guerra entre 4 de Fevereiro/15 de Março de 1961 e 25 de Abril de 1974.

Querem mesmo combater a corrupção? Rebentem com os jacarés. Eles fazem mais dano a Angola e ao Povo Angolano do que os marimbondos e caranguejos. Expliquem isso ao Benja Satula, esse verme indeciso entre o cadáver e a lixeira. 

“O papel do Poder Judicial é garantir a aplicação da Lei de forma imparcial, justa e objectiva, interpretando as normas jurídicas de acordo com as incidências apresentadas e os princípios constitucionais e legais orientadores”. Parem com os xingamentos porque não fui eu que disse ou escrevi isto. Estou a citar palavras do Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço. A partir de hoje, sentenças traficadas, justiça premeditada, processos engavetados, acórdãos de gaveta, excesso de prisão preventiva e outras ilegalidades acabaram. Aproveitem e libertam imediatamente o empresário angolano Carlos São Vicente, filho do jornalista Acácio Barradas, meu saudoso mestre a amigo.

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana