sábado, 17 de junho de 2023

Angola | OS COMBATENTES DA VILA ALICE – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A implantação do MPLA em Luanda depois do 25 de Abril de 1974 foi um processo que revelou grandes dirigentes, grandes militantes, grande patriotismo. Ao comando estiveram três homens excepcionais: Hermínio Escórcio, Manuel Pedro Pacavira e Aristides Van-Dúnem. E estes criaram uma equipa de operacionais igualmente excepcionais. Vou apenas referir aqueles que ainda guardo na memória com o pedido antecipado de desculpas aos que omitir. Eis os seus nomes: Aristófanes Couto Cabral, Mário Torres, Luís Rita (o homem das finanças), Correia Mendes e os manos Antas (Chico e Lindinho). A “decoradora” foi Teresa Gama.

Os esquadrões da morte ao serviço dos independentistas brancos começaram a atacar as populações dos musseques criando na capital um clima de terror. Dois comandantes do MPLA que foram capturados pela PIDE, quando chamados a ciladas montadas por agentes duplos (Ingo e Tetembwa), comandaram a resistência no “posto de comando” Dona Amália. Foram os primeiros a chegar porque estavam na situação de prisão domiciliar, não vieram da guerrilha. Tetembwa estava na Quiminha. Ingo no Lobito. As matanças de Luanda marcaram o início da II Guerra de Libertação Nacional, que durou até ao dia 11 de Novembro de 1975.

As instalações do MPLA ficavam em vivendas na Vila Alice. Após a assinatura do cessar-fogo entre o movimento e a potência colonial, em Setembro de 1974, foi criado o Comando Operacional de Luanda (COL). O comité Dona Amália continuou a ser um posto avançado. Defesa do povo numa lógica de proximidade abrangendo os bairros Marçal, Rangel, Terra Nova, Casa Branca e Sambizanga/Zangado.

O Comando Operacional de Luanda aglutinou os jovens angolanos que em 15 de Julho de 1974 abandonaram as forças armadas portuguesas. Oficiais subalternos, sargentos e praças eram a força armada que enfrentou e destruiu os esquadrões da morte dos independentistas brancos. Uma força aguerrida e altamente treinada. Mais tarde chegaram ao COL os grandes comandantes da guerrilha. Iko Carreira passou por lá, antes de mudar para o edifício onde está hoje o Ministério da Defesa e era o quartel-general da Região Militar de Angola. 

Comandante Xietu tinha lá o seu gabinete antes de mudar para o Ministério da Defesa. Comandante Valódia. Esteve lá até morrer em combate na Avenida Brasil para encerrar o aquartelamento do Esquadrão Chipenda. Os manos Soares (Nélito e Avelino). Nélito foi assassinado na Vila Alice pela tropa portuguesa já em retirada. Avelino foi o primeiro comandante da Marinha de Guerra. Comandante Marcos, operacional a tempo inteiro dia e noite. Comandante Ngongo um luandense acabado de chegar da Frente Leste. 

Comandante Nzaji trabalhou no COL até mudar para o Morro da Luz. Comandante Ndalu antes de ir para a União Soviética formar a IX Brigada era comandante no COL. Um dia estávamos todos nas imediações do edifício quando um combatente empunhou a sua arma e começou a ameaçar todos de morte. Uma situação perigosa que podia descambar num banho de sangue. O comandante Ndalu, pé ante pé, como um felino, foi-se aproximando das costas do jovem. Se ele o visse era morte certa. 

Lembrei-me dos filmes do Roy Rogers quando colocava bandidos e obrigava-os a sair dos esconderijos com as mãos no ar. Rendidos. Pus-me de frente para o jovem, mãos no ar e disse-lhe: Camarada, rendemo-nos! Calma. Não vale a pena matar ninguém. Somos todos camaradas. 

O comandante Ndalu avançou sobre ele, manietou-o pelas costas, desarmou-o e não correu sangue. Um comandante de verdade!

Numa vivenda mais abaixo no passeio contrário funcionava o Departamento de Organização de Massas (DOM). Era lá que conspirava no bem bom, ar condicionado, Nito Alves. Nunca o vi no COL. Era dirigente! Passou do nada a comandante e membro do Comité Central. Na época eu era chefe de redacção da Emissora Oficial de Angola (RNA). Fui convocado para uma reunião com o comandante Dilolwa, Manuel Pedro Pacavira e Nito Alves. 

O comandante Dilolwa entrou a matar: “Estamos encurralados. Vamos perder a batalha da informação. É preciso reagir”. Foi-me dada a palavra e eu disse mais ou menos isto: A Rádio não pode fazer mais nada. Rui de Carvalho e Luís Filipe Colaço mandam todos os dias a agenda do DIP e nós cumprimos. Até fazemos mais. Está mais fácil levar a nossa mensagem aos Media internacionais do que cá dentro. Vou redobrar as minhas colaborações nos programas Luanda e Equipa. Mas podemos usar melhor o meu programa na Voz de Angola.

Convidado a explicar como, disse que tínhamos de criar um plano especial. Cada dia divulgávamos mensagens estratégicas embelezadas com registos magnéticos recolhidos nas ruas, empresas, repartições públicas de todo o país. O meu programa é uma boa solução.

Dito isto, Nito Alves empertigou-se, sibilou “ponto de ordem” e avançou com um discurso martelando as sílabas: A pequena burguesia tem de compreender que não pode ser egoísta e individualista. O programa não é teu. O programa é do povo!

O Comandante Dilolwa conhecia-me bem e sabia que ia responder à letra. Manuel Pedro Pacavira ainda me conhecia melhor e sabia que ia disparar o monakaxito. Quando vi um sinal de angústia no seu rosto decidi fazer humor. Mas como sou do mato, tenho mau gosto. Respondi mais ou menos assim: 

Camarada Nito Alves não admito que me chamem pequeno burguês. Nem médio. Eu ando a treinar para grande burguês. Vou chegar lá. Faço aqui a minha autocrítica. O programa Contacto Popular é mesmo do povo, não é meu. Mas a namorada do camarada também é do povo. Eu sou do povo. Esta noite vou dormir com ela e o camarada dorme com o cão no quintal em cima da esteira.

Ninguém riu. Pelo contrário. Nito Alves espetou o dedo e martelou as sílabas: Camarada não te admito faltas de respeito, eu sou um dirigente.

Espetei o dedo e respondi: Camarada dirigente eu sou anarco-libertário insurgente e nunca tive medo de qualquer dirigente.

Manuel Pedro Pacavira tinha jeito de padre, deve ter aprendido com o cónego Manuel das Neves, seu conterrâneo do Golungo Alto e camarada de conspirações para o 4 de Fevereiro. Começou a falar baixinho, com muitas pausas. Disse que eu tinha de pedir desculpa ao camarada Nito Alves. O camarada Dilolwa, do alto da sua autoridade (era do Bureau Político tal como Pacavira) exigiu que me retratasse.

E eu, com cara de pintainho à chuva disse despachadamente: 

Peço desculpa aos camaradas dirigentes e particularmente ao camarada Nito Alves. Não quis ofender ninguém. Tentei fazer humor mas falhei. Nós, os do mato, somos uns boçais. Desculpa camarada Nito Alves. Desculpa camarada Pacavira. Desculpa Camarada Dololwa. 

Só Nito Alves falou: Estás desculpado. Mas com um ar que ficava melhor se dissesse “a partir de hoje és um homem morto”.

E matou mesmo. Quando chegou a ministro moveu os cordelinhos para correr comigo do Diário de Luanda. O ofício do ministro da Informação dizia que eu era demitido por ser “sabotador do processo produtivo”. Naquele tempo esse crime dava fuzilamento. No mínimo internamento no Bentiaba para reeducação. Fui salvo por Lúcio Lara, Comandante Pedalé, Manuel Pedro Pacavira e Comandante David Moisés (Ndozi) que estava ao comando da IX Brigada. 

Lamento informar que Nito Alves era comandante da OMA ou dos Pioneiros. Das FAPLA nunca foi, apenas assinou a proclamação tirando partido da situação existente no seio do MPLA com as chamadas “revoltas”. Falam das “teses” em sua defesa. Ainda bem. Foram redigidas por uma equipa dirigida pelo Rui Coelho e da qual faziam parte alguns militantes comunistas portugueses do grupo da Sita Vales. A redacção final foi do juiz Albertino de Almeida.

Nito era um básico com jeito para memoriar frases feitas do marxismo-leninismo. Eu sou mais pela Conquista do Pão, de Kropotkine. Anarco-libertário às segundas quartas e sextas. Anarco-comunista aos domingos e feriados. Aos sábados dou entrevistas à psicoundumbu-ndindigrafista Solange (sou mesmo poliglota). O melhor da festa é gastarmos o dinheiro que o Benja Satula recebeu das confissões de um estadista. Só bebemos tinto velho. Em grande!

*Jornalista

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