Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Há um problema de segurança associado ao consumo de drogas ilícitas a adensar-se, evidente e excessivo, e está longe de ser um fenómeno exclusivo de zonas bem identificadas das cidades do Porto e de Lisboa. Só por desconhecimento e provincianismo capital se pode pensar que estamos perante um privilégio negativo de duas cidades. Basta palmilhar as maiores dez zonas urbanas do país, centrais e periféricas, para se perceber que está longe de ser um problema “à la carte” exclusivo de tripeiros ou alfacinhas num roteiro “drug’n’roll”. Fechar os olhos à evidência, retirando-a do campo da segurança ou da esfera da saúde pública, simultaneamente, é esperar que a doença se automedique ou que o problema desapareça por si.
Confundir a necessidade de segurança ou de protecção da saúde pública com a desnecessidade de adaptar uma lei que hoje permite que cerca de 30% dos condenados em 2021 por crimes relacionados com drogas sejam consumidores, é uma total aberração. Para uma lei que descriminalizou o consumo há 23 anos, algo se passa. Há uma evidente inadequação legislativa às novas e múltiplas realidades das substâncias sintéticas. Continuamos a fazer perdurar uma legislação que ainda vive no mundo analógico de consumos. Quando o digital chegou à indústria da cultura como uma surpresa anunciada, foi a falta de capacidade do quadro legislativo em se adequar à realidade que criou disfuncionalidades que até hoje não foram resolvidas, colocando à margem da sobrevivência criadores, intérpretes, executantes, revestindo o bolso e o poder discricionário de intermediários e barões. Não é muito diferente o que se está agora a passar no campo da indústria das substâncias e do tráfico que, infelizmente, lhe está associado e que não conseguem ou não querem conter.
As substâncias psicoactivas passaram, ao longo de duas décadas, por maiores transformações do que grande parte das matérias-primas e indústrias. Alteraram a forma, a dosagem, o equilíbrio químico, esconderam-se em tabelas indistintas, fugiram à classificação, reinventaram-se, procuraram consumidores e diversificaram oferta. Endureceram-se, numa aparente ligeireza recreativa que vai muito para além de experiências e momentos. Olhar para o contexto como uma oportunidade para nada fazer, enquanto os problemas de saúde pública e de segurança se agravam, é agitar um belo mix de cobardia e populismo. A realidade choca de frente com a inacção. E com a lei.
*Músico e jurista
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