sexta-feira, 6 de outubro de 2023

NÃO SEREI EU UMA CRIANÇA? RACISMO NA INFÂNCIA EM PORTUGAL

Um homem perseguiu duas crianças negras no festival MIL acusando-as de terem roubado um cartão bancário que estava na sua carteira. Justificou as suas ações dizendo, num racismo primário, que pensava que se tratava de crianças de rua, crianças ciganas, que ali estariam a roubar. Teria o agressor o mesmo ímpeto para as criminalizar se fossem brancas?

Setenta e Quatro

No dia 28 de setembro de 2023, no recinto do Festival MIL, em Lisboa, experienciamos um ato de violência contra duas crianças, de 5 e 8 anos, um ato ao qual o racismo não é alheio. As meninas, as únicas crianças negras no evento, estavam a brincar na esplanada do recinto, onde várias pessoas as conheciam, pois, as mães são artistas audiovisuais conhecidas da equipa de produção e o pai de uma das crianças era um dos palestrantes convidados.

Sentiam-se, portanto, num espaço seguro para que as crianças brincassem e corressem, entre as mesas da referida esplanada. A menina mais nova, juntamente com uma testemunha que trabalha no restaurante, alertou as mães para o facto de haver um homem a correr atrás da menina de 8 anos, tendo-as acusado de ter roubado um cartão bancário que estava na sua carteira, dentro de uma mochila.

Naquele momento, a mãe e o pai da menina mais velha saíram em busca da filha e, não a encontrando na zona da esplanada, avançaram para um dos edifícios do evento. Numa das salas estava a sua filha a chorar e a gritar, o homem que a havia perseguido e mais três ou quatro pessoas. Além de as ter acusado e perseguido, esse homem terá agarrado a menina mais velha pelo braço. Os pais questionaram o agressor sobre o motivo pelo qual ele, um homem adulto, não procurou os familiares ou algum responsável do festival, e decidiram chamar a polícia. Naquele compasso de espera, o agressor terá procurado justificar-se dizendo, num racismo primário, que pensava que se tratava de crianças de rua, crianças ciganas, que ali estariam a roubar.

Cerca de 40 pessoas disponibilizaram-se a prestar depoimento enquanto testemunhas à polícia que, entretanto, chegou. A produção do evento posicionou-se solidarizando-se de imediato com as famílias e mais tarde através de um comunicado nas suas redes sociais. Sabemos que isso não é comum, pelo que só podemos esperar que outras organizações se sintam inspiradas a não abafar situações semelhantes que ocorram nas suas instituições.

Queremos que a justiça seja feita, que as crianças e famílias tenham acesso à assistência necessária à reparação deste trauma. Mas queremos também chegar a outras crianças que, pela sua origem étnico-racial – negra, cigana e outras –, são alvo de criminalização, vivem sob suspeita, alvos de violência psicológica e física racista nas escolas, parques infantis, nos transportes, estabelecimentos de comércio e, até mesmo, no seu bairro, sobretudo, quando este está classificado como Zona Urbana Sensível (ZUS).

Teria o agressor o mesmo ímpeto para as criminalizar se as crianças fossem brancas? Atrever-se-ia a passar do “pensamento aos atos”, indo da suspeição à agressão? Sentir-se-ia ele à vontade para violentar duas menores brancas num espaço público, num à-vontade respaldado pela expectativa de conivência de uma sociedade onde o racismo é generalizado? Estas situações, que nada têm de excecional, adoecem as nossas crianças, mas principalmente a sociedade portuguesa como um todo.

Exigimos que o Estado português, designadamente, o sistema de justiça, reconheça a motivação racial desta agressão. Exigimos que, de uma vez por todas, abandone um entendimento legal “minimalista” sobre o que se entende por racismo. Exigimos que rompa com o padrão de negação do racismo que tanto prejudica a vida das nossas crianças e jovens e a vida democrática deste país.

VER OS ASSINANTES DESTA CARTA ABERTA NO ORIGINAL EM Setenta e Quatro

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