sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Portugal | A meiguice é uma arma?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Quando Cátia Mazari Oliveira, aliás "A Garota Não", iniciou a leitura de um poema que escreveu para agradecer a atribuição do Globo de Ouro para Melhor Intérprete da 27.ª edição da iniciativa da SIC, arrancou uma primeira reação de aplauso do público no quarto dos 12 versos desse texto, quando disse: "Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação."

Na véspera desta cerimónia, intitulada de gala, milhares de pessoas mobilizaram-se para acorrerem, numa vintena de cidades, a manifestações pelo direito à habitação. Em Lisboa e no Porto foram mesmo grandiosas.

Viram-se cartazes com linhas deste tipo:

"Os nossos bairros não são os vossos negócios";
"Sob a capa do desenvolvimento e do novo capital a angústia é social";
"Se não há habitação existe direito à okupação"
...entre muitas outras no mesmo tom, várias delas comparando salários muito baixos com elevados preços de arrendamentos ou de prestações a pagar aos bancos.

Há uma naturalidade hiperbólica na mecânica das manifestações políticas e sociais: às frases fortes dos cartazes, diretas e acusatórias, junta-se o grito de palavras de ordem reivindicativas, o apupo aos poderosos ou oponentes políticos, o cântico de históricas canções de protesto, a exigência de soluções imediatas e, até, a ameaça do recurso à violência desesperada - tudo isso é normal, neste enquadramento democrático, há já muitos anos (em Portugal há quase 50).

Quando A Garota Não, no palco brilhante, frívolo e luxuoso do Coliseu dos Recreios, disse, na mesma voz meiga com que canta a sua arte, a frase "Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação" simbolizou com serenidade a reivindicação, o grito, o apupo, o cântico, o desespero dos manifestantes das ruas do país, assustados com a escuridão de um cenário de miséria que lhes enquadra uma vida demasiado real.

Cátia começou por dizer que vinha do Bairro 2 de abril (que é, também, o nome do seu segundo LP), em Setúbal, talvez com a intenção de explicar que sentia que o mundo dela era mais o da gente lá de fora do que a daquele planeta que a homenageava. Mas procurou a adesão das pessoas que estavam à sua frente, não as alienou, o que seria arrogante e mal-agradecido. Procurou antes que aqueles homens vestidos de smoking e aquelas mulheres de vestido de noite, talvez indiferentes ou até críticos das preocupações e posições políticas e sociais expressas em muitas das suas cantigas, tivessem, pelo menos, uma hipótese de sentirem empatia com as motivações da cantautora.

A ovação final parece comprovar que até houve mais do que isso, houve mesmo identificação entre plateia e oradora. Ela conquistou-os. Mais importante que isso: mais de um milhão de pessoas, na TV, foi também envolvida por esse ambiente e essa aprovação.

Numa entrevista ao site Setenta e Quatro, Cátia disse que se sente mais uma cantora inconformada do que uma cantora de intervenção...

Eu acho que ela é uma cantora de protesto. Disse até, num programa de rádio que faço na Antena 1, que A Garota Não "representa uma inovação na canção de protesto portuguesa, quer na forma musical e interpretativa, quer nos textos que escreve ou escolhe para interpretar, quer na maneira como se apresenta em palco ou como fala com o público.

Ela é clara nas posições que toma, mas, ao mesmo o tempo, recusa ser agressiva com o ouvinte ou o espetador - o protesto, a denúncia, a indignação estão lá, mas estão subordinados à sensibilidade, ao humanismo, à dignidade, à ternura e à liberdade com que quase todos nós, naturalmente, nos identificamos".

Para José Mário Branco, há 50 anos, a cantiga era uma arma onde, dizia a letra da música com esse nome:

"Tudo depende da bala
E da pontaria
Tudo depende da raiva
E da alegria."

Para A Garota Não, cantora de protesto em dias onde a raiva é a bala de prata da injustiça social, a meiguice é a melhor arma das suas canções.

PS: Deixo, para registo, o texto que foi lido por Cátia Mazari Oliveira:

"Vivemos o tempo dos Budas, das flores de plástico e das cómodas douradas,
E rimos muito alto, por cima da música alta das esplanadas.
Vivemos o tempo da Kombucha, do coaching, das soft skills e da gratidão;
Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação.
Vivemos o tempo mais corrido de sempre,
Das metas, dos objetivos, do "nem que me esfarrape";
Não há esforço que não valha a pena, seremos todos Luft, Tap.
Vivemos tempo de maioria absoluta, de posso e mando, de meritocracia.
O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia.
Obrigada por esta oportunidade, um Globo de Ouro nas mãos de um ser tão falho.
Há quem tenha muita sorte.
A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho."

*Jornalista

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