Nuno Ramos de Almeida | Diário de Notícias | opinião
Gosto de reescrever textos, para além de roubar tempo ao trabalho, é uma espécie de mantra em que se pode convocar o passado e evocar gente que amamos, mas que não está presente entre nós. As palavras são uma forma de encantamento que trazem à vida quem determinou o nosso caminho e reafirmam as nossas fidelidades.
Persistimos em pensar que não nos esgotamos na morte e que os que ficam são uma espécie de continuidade sem nós, como os nossos persistem, no tempo, nos nossos atos.
É óbvio que o que pensamos tem muito a ver connosco e a nossa circunstância e que não somos nada, sem sermos em relação aos outros em que nos inserirmos. Mas vamos à história recontada.
Numa altura em que se branqueiam os negros tempos quando não tínhamos liberdade e transformam os amigos dos ditadores de turno em heróis da liberdade, a memória torna-se uma arma no presente. A única vantagem de ter vivido tempos é que eu sei o que é a ditadura, a revolução que faz meio século e a liberdade, simplesmente porque vivi. Aqui fica um conto sobre esse fio de tempo, como agora se diz.
Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas onde viviam crianças. Era membro de uma comunidade, embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas, na altura, isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.
Tinha a nítida sensação de
pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Nesse coletivo estavam
pessoas de muitas raças e países. Anos antes, andava na escola francesa
Eu frequentava uma escola de que
só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos às guerras. Os
professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam, batiam-nos e
ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos espancados e
confrontaram os professores, que negaram terminantemente as agressões. Um dia,
alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos agressores no meio
da confusão do pátio. Lembro-me que algumas das nossas pedras lhe acertaram
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