«A política, na sua ‘dignidade, utilidade e fecundidade’ não pode ser asilo de incapazes (…) A política é para os políticos» - Dito por Gonçalves Rapazote, deputado da União Nacional e ministro do Interior do regime fascista, com responsabilidade pela PIDE. Discurso de 1965
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Novembro pariu um monstro: a classe política.
A «classe política», como ela própria se define com uma presunção assente em vocação inquestionável, direito natural, pergaminhos herdados de mil e uma linhagens sagradas, imaculados dotes democráticos – e a prosaica ganância de poder, deve acrescentar-se – começou a ganhar a forma que hoje ostenta em Portugal a partir do momento em que foi dada a primeira grande machadada na dinâmica popular criada pela Revolução de 25 de Abril de 1974.
O 25 de Abril e o derrube do fascismo não resultaram da acção de uma qualquer classe política. Foram obra do Movimento das Forças Armadas e da mobilização imediata, espontânea e fulgurante do povo, precisamente para pôr termo aos desmandos de uma classe política, a salazarista, que tratou o país e as suas gentes como coisas próprias e sem prestar contas a ninguém.
As transformações por que passou a sociedade portuguesa durante os meses seguintes ao Movimento dos Capitães também não precisaram de qualquer classe política. A iniciativa popular e as linhas programáticas definidas pelos militares do Movimento das Forças Armadas traçaram caminhos, muitos deles inovadores, para estabelecer uma democracia de todos e para todos na qual a vontade do povo nunca deixasse de contar e de estar presente. Abriam-se as portas de uma democracia coerente com a sua definição: o poder do povo.
O período em que a participação popular determinou o essencial das decisões políticas e económicas dispensou, portanto, qualquer mecanismo de governação que se aparentasse com uma «classe política». Quando esta ressurgiu como o único centro de poder no qual o povo se limita a delegar, sem depois ter mais qualquer intervenção ou controlo no desenvolvimento e desfecho do processo de decisão, a democracia encontrou uma barreira tanto mais autoritária quanto mais fortes forem a luta e as reivindicações populares. A classe política, como demonstra a história dos seus comportamentos, afunila a democracia, põe-na «a salvo» da vontade do povo, acabando rotineiramente por asfixiá-la. Fecha as portas à genuína democracia.
A liberdade reencontrada graças à Revolução de Abril foi o instrumento essencial da mudança política que associou o pluralismo dos partidos à componente militar libertadora e à criatividade popular, manifestando-se esta através de uma teia de associações de base vocacionadas para intervirem, a vários níveis, na estruturação do novo poder, na recriação do Estado, na transparência das empresas e nas tomadas de decisão. Porque a democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando.
Uma particularidade notável dessa fase foi o facto de os partidos políticos recém-criados – e outros que não tinham então mais de um ano de vida – sentirem ainda necessidade de reflectir as vontades dos seus militantes e apoiantes, vendo-se assim obrigados a associar a própria sobrevivência e a conquista de espaço político-eleitoral à genuína auscultação das bases. O impacto social do 25 de Abril fez com que os recém-criados partidos tivessem uma componente popular significativa – ainda que a contragosto dos seus fundadores e dirigentes, que preferiam massas eleitorais sossegadas, acriticamente seguidoras e obedientes, de preferência pouco ou nada esclarecidas.
Não era ainda chegado o tempo, que não demorou, em que os aparelhos dos novos partidos passaram a decidir tudo em confraria restrita, marginalizando a base militante, até extingui-la. A transformação gradual para alcançar a «estabilização» funcional dos mecanismos de decisão de cada um deles nem sempre foi e é pacífica, naturalmente, porque o número de cargos públicos, privados e partidários é sempre menor do que o número de candidatos às mordomias – e quase nunca chega para satisfazer a gula das clientelas.
Na sequência do 25 de Abril, em suma, desenhava-se uma democracia em que os partidos seriam uma parte essencial da estrutura de decisão, mas não os donos absolutos do poder. No entanto, a componente vingativa e revanchista que abocanhou o golpe de 25 de Novembro de 1975 cortou cerce essa perspectiva, apesar dos apelos à moderação lançados por alguns militares lúcidos. Anunciava-se já o embrião de uma nova classe política.