domingo, 5 de maio de 2024

Portugal | O JUSTICIALISMO NA ENCRUZILHADA

Jorge Lacão* | Diário de Notícias | opinião

Em termos práticos, o justicialismo traduz-se na pretensão de fazer do sistema de justiça um corpo unicitário no interior do qual, ainda que com diversas incumbências funcionais, todos concorrem para impor, sob impulso do inquisitório, uma cultura padronizada de valores.

Essa pretensão pode enunciar-se assim: o eixo do sistema judiciário centra-se no aparelho de investigação criminal, os seus agentes togados devem ser vistos como detentores de um estatuto de autoridade paralelo ao dos juízes - independentes, como eles -, dispor de capacidade de tutela direta sobre os organismos policiais, ser isentos de prestação de contas fora do respetivo corpo e, no essencial, insindicáveis por qualquer outra entidade, dispondo, em última instância, de uma espécie de superintendência sobre o conjunto do sistema.

E, para que tal modelo seja perfeito, cereja em cima do bolo, muitos defendem ainda a prevalência de um Conselho Superior de Justiça integrando ambas as magistraturas.

Porém, importa lembrar que, no sistema de justiça, a soberania reside no tribunal e que o titular deste é o juiz, o qual aplica o direito sem outro critério que não seja o estatuído na Constituição e na lei. É o juiz que, pela sentença, define a justiça e de modo algum o magistrado do Ministério Público pela acusação.

No que ao Ministério Público diz respeito, o reclamado paralelismo com a magistratura judicial começa e acaba nas equivalências da condição profissional que não podem afetar a especificidade das suas diferentes naturezas.

O problema é que essa claridade não se mostra capaz de iluminar suficientemente um entendimento diverso, historicamente protagonizado pela corrente sindical do MP e perigosamente à beira de ser acolhido em vários momentos pelos próprios decisores políticos.

Na fase de aprovação do atual Estatuto do MP (Lei n.º 68/2019), a Proposta de Lei 147/XIII apresentava (Art.º 97.º) uma versão que dizia tudo sobre os riscos da má influência: “Os magistrados do MP são responsáveis e hierarquicamente subordinados, sem prejuízo da sua autonomia, nos termos do presente Estatuto”.

Dessa visão subvertida do princípio institucional da autonomia e da responsabilidade interna dos magistrados decorriam outras similares nos domínios da mobilidade, da gestão processual ou da acumulação de funções, todas limitando os poderes de orientação hierárquica.

A PGR absteve-se de fazer prevalecer a autoridade que o Estatuto lhe confere e uma impugnação da referida diretiva para o STA anda ainda perdida num clima geral de desresponsabilização.

Mas as omissões não se quedam no tema das relações hierárquicas. Também não se conhecem outras diretivas exigidas pelo Estatuto, particularmente as relativas ao controle de legalidade nas ações de prevenção criminal ou quanto aos critérios de coordenação e implicação dos órgãos de polícia criminal face aos diversos tipos de processo.

Explicando melhor: por imposição da lei (N.º 3 do Art.º 19.º do EMP)“o Procurador-Geral estabelece , em especial, as diretivas - a publicar na 2.ª série do Diário da República - que assegurem o controle de legalidade nas ações de prevenção, nomeadamente quanto à data da instauração, à comunicação que lhe dá origem, ao tratamento e registo das informações recolhidas, ao prazo e respetivas prorrogações e à data de arquivamento do procedimento ou do conhecimento da prática de crime e da correspondente abertura de inquérito”.

Tem de perceber-se porquê. Porque as fases administrativas da atuação do MP não podem deixar de ser devidamente registadas para poderem ser devidamente sindicadas, se for o caso.

Tanto mais que a pretensão inicial era a de poder dispor, nessa fase, de uma faculdade de exigir documentos, informações e esclarecimentos a qualquer pessoa ou entidade sem qualquer necessidade de fundamentação.

Hoje, a disposição legal (Art.º 5.º) exige que a pretensão seja devidamente justificada em função da competência a exercer e nos limites da lei.

Noutra dimensão, o MP deve lidar com as polícias que atuam sob sua orientação no âmbito de cada processo. Mas existe uma lei de organização das funções de polícia e da sua adjudicação em função dos tipos legais de crime. Quais os critérios da sua utilização? E quais os critérios que conduzem à criação de equipas especiais de investigação à margem, por exemplo, da polícia científica de investigação?

A lei pretende que os métodos utilizados sejam adequadamente racionalizados (Alínea i) do n.º 2 do Art.º 19.º do Estatuto). Ora, sobre tudo isto, e não apenas, continua a prevalecer mais a opacidade que o esclarecimento.

O Estatuto prescreve, também, em nome da transparência, um adequado processamento informativo da atividade do MP, devendo o relatório anual ser institucionalmente apresentado pelo PGR - ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo -, o que, acrescendo ao balanço a prestar sobre as orientações de política criminal, estabelece um evidente princípio de accountability quanto ao funcionamento e à avaliação dos resultados do MP.

Infelizmente, quem mais deveria garantir a sua correta aplicação parece ter-se alheado das suas incumbências. E quem, noutra dimensão, mais deveria zelar pelo regular funcionamento das instituições compraz-se em derivas inconsequentes sem contributo que se veja para obstar às anomias do Estado de Direito e, já agora, da própria autoridade democrática do Estado.

Um exemplo da disrupção feita regra: as disposições da lei processual penal em matéria de prazos - fundamentais para a efetiva realização da justiça em tempo útil - são frequentemente desprezadas, vinculando-se a promoção apenas aos prazos da prescrição.

Vivemos num evidente menosprezo dos direitos dos cidadãos, tanto vítimas como arguidos, uns e outros com as suas vidas suspensas por tempos que se arrastam, muitas vezes com a sua honra e a sua dignidade irremediavelmente destruídas por atuações e omissões à sombra de inércias intoleráveis.

Entretanto, na sociedade vai prevalecendo a descrença. E é neste ponto que estamos, um ponto de encruzilhada. Para sair dela de uma forma consistente impor-se-ia uma avaliação de fundo ao funcionamento do sistema de justiça numa ótica comprometida com a preservação dos direitos fundamentais, clarificadora dos pressupostos do exercício da ação penal, exigente quanto à condição processual tanto do arguido como da vítima, atenta à proporcionalidade devida no recurso às formas mais intrusivas de obtenção de prova, exigente no princípio da separação de poderes, na natureza distinta das magistraturas e também dos organismos de investigação, e ainda particularmente atenta às modalidades de formação dos magistrados.

A Assembleia da República, através de uma Comissão dedicada a uma ampla audição parlamentar e à elaboração de um consequente relatório conclusivo é, obviamente, a sede própria.

E é de tais conclusões que deveriam decorrer as reformas que a evidência impusesse. Cinquenta anos de Democracia e a necessidade de velar pela qualidade do Estado de Direito mais do que justificariam uma tal iniciativa.

Mas atenção: nenhuma reforma, nenhum aperfeiçoamento legal dispensa o exercício pleno e responsável dos poderes-deveres em que cada um está investido.

Antigo Deputado

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