quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Portugal | Despachem o Orçamento. Marcelo quer despachar o almirante

Ângela Silva, jornalista | Expresso, em A Vida é Vil

Caro leitor,

Faltam dois dias para a primeira reunião que conta sobre o próximo Orçamento de Estado e o precipício do chumbo cheira a suicídio coletivo mas nada nos tranquiliza. Pedro Nuno Santos e Luis Montenegro detestam-se (não se respeitam, como se diz em política), são os dois excessivamente dançarinos, mas nenhum deles quis dançar o tango. Pedro Nuno lidera um partido que sofre do “complexo Passos/2015”, ressentido por ter sido apeado do poder quando menos esperava e disposto a regatear um estatuto que já não tem e Montenegro chefia um Governo que vive a salivar por uma maioria absoluta e está disposto a lutar por ela. Embora o estado de necessidade tenda a juntá-los, a química para compromissos, percebe-se, é fraca. O líder do PS ainda sonha ver Montenegro nos braços de Ventura e Montenegro sabe que esse não é o seu passo e planeia ir a votos. Mas faltam-lhe sondagens e o Presidente da República, a agigantar crises políticas e económicas, tanto ajuda como desajuda. O tango, caro leitor, nunca é a três e não é para todos. Prepare-se, há pirómanos e interesses obscuros a sobrevoar este Orçamento de Estado e vamos andar nisto.

Marcelo está doido por se safar do Orçamento por razões óbvias – quem diz que mesmo em duodécimos seria possível continuar a financiar os investimentos do PRR esquece-se de que, se a “bazuca” já está super atrasada, então com a máquina do Estado seis meses parada o que seria - mas também tem pressa porque em dezembro há outras guerras à espera.

É sempre assim, no último ano dos mandatos os Presidentes têm sonhos maus com a escolha de quem lhes irá suceder e na cabeça de Marcelo Rebelo de Sousa há um nome a abater e uma chance que espreita. Gouveia e Melo em Belém seria tudo o que o atual Presidente acha péssimo – o regresso de um militar ao topo do Estado; a eleição de um Presidente com aura de anti-sistémico; e a escolha de alguém que não sabemos o que pensa mas que lhe trocaria as selfies por ralhetes autoritários ("colinho dá a mãe em casa, os centros de vacinação não são psicoterapia", lembra-se?). O Presidente tem três meses para tentar desfazer este nó.

O mandato do Chefe do Estado Maior da Armada termina em dezembro e basta que o Governo apresente uma proposta de recondução do almirante para o Presidente assinar de cruz. Não sabemos se Gouveia e Melo está interessado, mas sabemos que, para uma cabecinha militar, chegar ao topo conta. Claro que o almirante pode preferir o topo da hierarquia política ao topo da hierarquia militar e trocar as Forças Armadas pela corrida ao Palácio de Belém. Mas o plano de Marcelo tem outras alíneas, permite temperar as conversas conexas com açúcar e, como em março de 2026 fica vago o cargo de Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o Presidente, que ainda estará em funções, assinaria com gosto a nomeação do almirante. Seria o topo dos topos e, para Marcelo Rebelo de Sousa, o desejado 'adeus Gouveia e Melo' da corrida à sua sucessão.

Se ninguém imagina Marques Mendes Chefe do Estado Maior da Armada ou Mário Centeno Chefe do Estado Maior do Exército, porque é que havemos de imaginar o Chefe da Armada no topo dos cargos políticos? Claro que conseguimos imaginar António Costa a chegar ao topo seja do que for, até a presidente do Benfica, mas Costa é um caso à parte, e não é certo que fique imune para sempre à doença que costuma dar saúde aos que saltam da gestão da pátria para voos internacionais e passam a ver o país como uma ervilha. Sem Costa, sem Guterres, sem Durão e sem Portas nas presidenciais, com Mendes e Centeno e aparentemente sem Passos, a carta fora do baralho pode ser o almirante, mas Marcelo tem um plano. Chama-se "seduzi-lo para chegar ao céu nas Forças Armadas”.

O país não conhece Gouveia e Melo. Viu-o pôr ordem na casa durante a vacinação covid mas não lhe conhece pensamento sobre nada, nem política, nem economia, nem país, nem mundo. E presidir ao Estado não é uma vacina. Sabemos que tem tiques de autoritário, como se viu durante a pandemia quando deu o tal ralhete aos que num centro de vacinação em Sintra tinham dúvidas sobre vacinar-se – “Colinho dá a mãe” é o “não sejamos piegas” do passismo em versão fardada. E sabemos que não é dado a diplomacias, como se viu nos relatos que fez sobre a sua presença nos exercícios da NATO: "Sou o mais sanguinário possível. Se entra um inglês no exercício, é o primeiro que ataco, porque lhes quero tirar o snobismo. Não gosto de snobes. Aos franceses também não perdoo, porque são chauvinistas, e os alemães também não deixo escapar porque tenho família judaica” (Paulo Rangel e tudo quanto sejam ex-MNE devem pagar para ver o almirante reconduzido na Armada).

Mas há quem goste, há quem precise e há vazios por preencher, conversa que não vale só para André Ventura. Se o PSD e o PS continuarem na baixa política, se o Chega não entrar no tango e se o Orçamento chumbar, o povo vomitará mais eleições e pode fugir para um Presidente que em vez de lhe dar afeto o mande para a mãezinha. Seria burlesco e vale uma raspadinha: o Orçamento passa na primeira votação (chama-se na generalidade e acontece em finais de outubro); treme e fica por um fio na discussão proposta a proposta (chama-se na especialidade e acontece em novembro) e consegue salvar-se na 25.ª hora, dê por onde der e se Deus quiser.

Alguém explique a Luis Montenegro que ceder no IRS jovem até pode dar brinde: poupa dinheiro, livra-se de uma medida hipercontestada e que choca com a Constituição e permite-lhe acumular capital de queixa. Ele até queria aliviar os jovens e os empresários, mas os malandros dos socialistas não deixaram: um dia, quando ele tiver maioria absoluta, tudo será diferente (a tese de Cavaco está viva mas ainda tem tempo).

Quanto a nós, caro leitor, é torcer para que tudo se atamanque. Imagina-se a aturar outra campanha eleitoral daqui a três ou quatro meses? E imagina o almirante à conquista do país? Eu também não.

Até para a semana.

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