Como foi possível o roubo ao
paiol militar de Tancos? Quem sabia o quê? Quem teve a ideia da "encenação
da entrega das armas"? O despacho de acusação conta tudo sobre o roubo de Tancos
e as suas motivações, segundo o MP. Uma história no mínimo mirabolante.
Era difícil resistir a uma
tentação como esta: paióis cheios de armas, sem segurança, prontas a serem levadas. João Paulino teve a
oportunidade perfeita para um traficante - de armas e droga. Ainda que não
fosse um grande traficante, caiu-lhe no colo toda a informação que lhe
permitiria um golpe perfeito, e, talvez, além das suas possibilidades. Ou,
pelo menos, em relação ao qual não podia prever todas as consequências, e o
terramoto, até político, que iria causar no país.
Para perceber como é que Paulino chegou a Tancos têm de entrar nesta história
outras duas personagens. Filipe Sousa, furriel, colocado nos Paióis Nacionais
de Tancos (PNT), e o seu tio Valter Abreu, conhecido por Pisca, por ter um
dos olhos semifechado, consumidor de haxixe que, por sua vez, devia cerca de
mil euros a Paulino de uma encomenda.
Estavam tio e sobrinho a ver
televisão, passava uma notícia sobre terrorismo e Filipe atirou para o ar:
"Se houvesse terrorismo em Portugal ou uma guerra, Tancos não estava
preparado."
Foi o arranque de uma conversa
sobre o trabalho que fazia naquela base militar. Pisca, com alguma manha,
segundo o MP, puxou pelo sobrinho e este revelou-lhe tudo sobre o sistema de
segurança, patrulhas, material que lá estava - de acordo com o que o próprio
assumiu durante os interrogatórios no DCIAP.
Sustentam os procuradores que
Filipe "falou abertamente sobre tudo: contou-lhe pormenores sobre as suas
funções no Regimento de Engenharia, descreveu-lhe o número, a periodicidade e a
natureza das rondas efetuadas - chegando a dizer que não tinham apoio
canino".
Durante o jantar "contou-lhe
ainda as fragilidades de segurança que reconhecia existir nos Paióis", bem
como "o tipo de material armazenado", principalmente o que estava nos
paióis 14 e 15. Apercebendo-se do interesse do tio, "descreveu ainda, em
pormenor, o tipo de fechaduras que estavam colocadas nas portas desses paióis,
referindo-lhe que eram velhas".
Na posse daquela
informação, Pisca fez o que alguém faz quando tem necessidade:
usou-a, trocando-a pelo perdão da dívida de droga que tinha com João Paulino.
Também "conhecia o seu interesse pelo material militar", contam os
investigadores.
O efeito ultrapassou as suas
expectativas. Não só Paulino esqueceu a dívida como ainda lhe deu mais haxixe.
Porque percebeu a oportunidade que lhe trazia o seu cliente. "Disse-lhe
que queria fazer os paióis, querendo com isso dizer que queria
assaltá-los", é dito na acusação.
Usou o seu bar, JB, em Ansião,
para os primeiros encontros e conversas com os cúmplices: Baião, Pedro
Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira, rapazes da sua confiança, por cujas mãos
já passava o tráfico de droga.
A estes juntou-se também
Laranginha, compadre de Paulino, padrinho da sua filha e com contactos no
tráfico internacional para escoar o material. Laranginha é arguido no processo
do furto das pistolas Glock da PSP, precisamente porque terá sido quem as
traficou para o mercado negro. Aliás, souberam os investigadores que uma destas
armas terá ido mesmo parar às mãos de João Paulino.
Segundo apurou o MP nos interrogatórios
aos outros arguidos, terá sido Laranginha quem anunciou que podia contactar
elementos da ETA - que viria a anunciar a sua dissolução em abril de 2018 -
para lhes vender os explosivos que desviassem.
Segundo a acusação, o objetivo de
João Paulino seria furtar as munições de 9mm, explosivos, granadas e
lança-foguetes. Partiu daqui a tão discutida imputação de suspeita de
terrorismo. Embora, conforme o DN já noticiou, uma tese que lançou dúvida nas
autoridades espanholas e que as portuguesas também não conseguiram esclarecer.
Redes sociais tramam arguidos
Apesar de estarem no tráfico de
armas e droga, o grupo de Paulino não se coibia de estar também presente nas
redes sociais - os investigadores fizeram boa parte destas conexões através das
páginas dos membros, nas quais publicavam fotos juntos, informações de perfil e
demonstravam deslocações. Além do tráfico, o grupo de amigos do Bar JB
jogava póquer periodicamente. E além do bar, também um restaurante em
Aveiro, propriedade de outro dos acusados, Jaime Oliveira, passou também a ser
ponto de encontro, por ser mais próximo de Pisca.