ENTREVISTA
A investigadora palestina
denuncia o projeto colonial do Estado de Israel e defende que a única solução
para se parar a mortandade na Palestina é pôr um fim à ocupação e ao apartheid.
A linguagem que usamos, argumenta, é essencial para se compreender a realidade
que se vive em Gaza.
João Biscaia | Setenta e Quatro
Há um mês que a guerra em Gaza
abre os telejornais portugueses, mas nem sempre nesses termos. Por vezes
“conflito”, por vezes “guerra”, os bombardeamentos da população da Faixa de
Gaza têm tido vários nomes. “Invasão” saiu do léxico, “incursão” voltou a ser
admitido. Explicou-se o que era a punição coletiva, segundo o direito
internacional. Perante imagens de bombardeamentos ininterruptos sob um povo
forçado a um êxodo, esclareceu-se como é maleável a definição de limpeza
étnica.
Peritos debatem se bombardear um
hospital é ou não crime de guerra, se estão presentes as dez fases de um
genocídio, tal como estabelecidas pelo especialista em genocídios Greogry H.
Stanton em 1996, para podermos usar o termo “genocídio”. Entretanto, o número
de palestinos mortos é atualizado todos os dias na casa das centenas,
ultrapassando neste momento os dez mil.
“O que está a acontecer na
Palestina não é um conflito. É apartheid. Não estamos a assistir a uma
auto-defesa, mas ao genocídio do povo palestiniano.” Foi com esta clarificação
que a palestina Dima Mohammed, coordenadora do laboratório de investigação
ArgLab do Instituto de Filosofia da NOVA e professora na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da mesma universidade, começou a sua intervenção na
concentração contra a agressão a Gaza no dia 18 de outubro, em Lisboa.
“Há uma luta semântica a ser
travada”, diz a investigadora ao Setenta e Quatro, duas semanas
depois, em frente à mercearia Zaytouna, uma das várias embaixadas informais da
diáspora palestina em
Portugal. No último mês, essa luta travada ao nível da
retórica, da argumentação e da propaganda agudizou-se.
Discute-se se os milhares de
mortos em Gaza configuram um genocídio ou não e se cânticos que clamam pela
libertação de um povo serão, afinal, apelos ao extermínio de judeus. Para não
ferirem as suscetibilidades do Estado de Israel, líderes mundiais preferem
dizer “pausa humanitária” a “cessar-fogo”. Há um uso abusivo da memória do Holocausto
e das acusações de antissemitismo. Para Dima Mohammed, é a evidência de que “a
linguagem também é um dos lugares onde temos de lutar contra a colonização.”
Nascida e criada na Argélia,
filha de “refugiados filhos de refugiados” que hoje vivem na Cisjordânia
ocupada, Dima Mohammed doutorou-se em Estudos da Argumentação e dá aulas sobre
filosofia da linguagem, argumentação política e retórica. Já ensinou na
Palestina, na Suíça e no Canadá e veio para Portugal trabalhar no ArgLab, que
hoje coordena e onde investiga interdisciplinarmente as ligações entre
argumentação, linguagem e cognição.As suas investigações têm-se
debruçado ultimamente no uso da argumentação dentro do conceito de injustiça
epistémica, um tipo de injustiça relacionada com o conhecimento que se liga às
restantes injustiças (económicas, sociais, políticas). A injustiça epistémica
evidencia-se através da exclusão e do silenciamento de certos conhecimentos e
das pessoas ou dos grupos que os carregam.
É um conceito fulcral,
continua a investigadora, para entender o silenciamento dos palestinos e a
negligência perante os seus testemunhos, quando “aquilo que dizemos não é
considerado credível”. E também, considera, torna claras as estruturas
coloniais: “a epistemologia não tem as ferramentas necessárias para dar sentido
às experiências que vivemos ou para considerar o conhecimento de alguns grupos
desprivilegiados”.
Podemos falar de injustiça
epistémica em relação ao que tem acontecido, no último mês, ao povo palestino.
mais especificamente o de Gaza?
Sim. A voz palestina é
silenciada. O sofrimento do povo palestino não é recebido como o sofrimento de outros
povos pelos media ou os políticos. A resistência palestina é desconsiderada.
Assim, uma grande parte da experiência palestina torna-se completamente
invisível para o resto do mundo. E enquanto for invisível não será
compreensível.
Isto não é coincidência. O Estado
de Israel tem isolado os palestinos ao longo de décadas, desde o início da
ocupação. Não o faz apenas fisicamente, como vemos no cerco de Gaza ou na
dificuldade que qualquer palestino tem em sair para o estrangeiro. Também isola
as vozes palestinas. Isto torna as nossas experiências incompreensíveis para o
resto do mundo.
Vou à Palestina todos os anos.
Tento sempre levar amigos, pessoas que considero saberem muito sobre a
Palestina. Ao sair de lá dizem-me sempre, sem exceção, que nada os havia
preparado para a experiência de lá estar. O isolamento físico torna-se
isolamento psicológico, emocional, mental, intelectual — e também epistémico.
Creio fazer um bom uso da
linguagem, mas nem eu consigo explicar o que é ter os colonatos a sufocar as vilas
palestinas na Cisjordânia. Em Ramallah, considerada uma das cidades mais
seguras, não há nada que proteja os palestinos da violência dos colonos.
Maltratam e assediam pessoas nas nossas ruas, nas nossas cidades.