Nossa colaboradora viveu 15 dias num barco que resgata náufragos da travessia África-Europa. Lá, 85 mil estão sepultados por tentar fugir da desigualdade. A vida no convés. O árduo esforço de solidariedade. As violações dos governos racistas
Berenice Bento* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
Com gestos silenciosos, todos entram no refeitório. Parecia que os corpos ainda estavam dormindo. Nos aglomerávamos na cozinha para preparar um café rápido, antes da reunião. A tripulação do navio era formada por 25 pessoas, entre voluntários e contratados. Nos sentávamos ao redor de mesas e a reunião começava. Antes das 7 horas da manhã, iniciava-se o planejamento do dia. Pela escuridão da portinha, eu tentava adivinhar quando o sol iria nascer e desconcentrava-me dos encaminhamentos da reunião. Estávamos no Porto de Burriana, na Espanha, em um navio que faz resgate de pessoas no Mar Mediterrâneo. O navio precisava de reparos estruturais para reiniciar o trabalho. Não havia tempo a perder. Cada dia a menos de resgate, mais vidas poderiam ser perdidas.
Acompanho, há muito tempo, com perplexidade, as informações que chegam sobre as mortes no Mar Mediterrâneo. Pessoas que tentam, em embarcações precárias, chegar à Europa. Muitos morrem, desaparecem no mar, transformando o Mediterrâneo na maior vala comum da contemporaneidade. Foi para tentar entender como, mais uma vez, a Europa faz o impossível tornar-se possível e, ainda, normaliza suas aberrações políticas, que fui para um navio que faz resgate de pessoas e trabalhei como auxiliar de cozinha.
No auge da crise migratória, houve iniciativas de Estados europeus para a realização dos resgates. Mas não demorou muito e alterou-se radicalmente a orientação política. Não apenas suspenderam os resgates. As políticas de controle da fronteira e de negação de entrada vêm intensificando-se nos últimos anos. Na absoluta falta de políticas estatais voltadas para salvar as pessoas que estão no limiar da vida e morte, iniciou-se uma intensa mobilização da sociedade civil europeia. São inúmeras Organizações Não Governamentais que fazem os resgates. No Porto de Burriana, estavam os barcos dos coletivos Sea Punk, Sea Eye, Open Arms, Louise Michelle e o SOS Humanity I, onde fiz o trabalho voluntário. Esse é apenas um dos muitos portos em que os navios param para fazer os reparos. O tempo que leva para fazê-los estará condicionado aos recursos para aquisição das peças e da mão de obra disponível. O Sea Punk trabalhava com uma equipe reduzida e a previsão para retornar aos resgates não era certa. Em todo porto, as bandeiras antifascistas estavam espalhadas em camisetas, adesivos, e na coragem anarquista do Sea Punk, que trazia no seu mastro, como principal bandeira, a “AÇÃO ANTIFASCISTA”.
Foi na cozinha do navio, entre alhos, cebolas e faxinas, que escutei histórias e tentei encontrar respostas para questões que me angustiam: como é possível que o continente que inventou os Direitos Humanos segue deixando pessoas morrendo no mar e, em parcerias com a Líbia, provoca as mortes? Durante a escravidão, dizia-se que a Europa não tinha conhecimento das atrocidades cometidas nas colônias, mas, como aponta o historiador Conrad (no seu livro Tumbeiros), há relatos de que os navios que faziam o tráfico tinham um odor insuportável e inconfundível. Não era possível não os identificar antes mesmo de atracar nos portos e não conhecer os horrores que aconteciam na travessia e nas plantações nas colônias.
Depois da Segunda Guerra Mundial,
a civilizada Europa mostrou-se horrorizada com os genocídios cometidos nos
campos de extermínios nazifascistas. Mas o que era aquela fumaça escura que
cobria os céus das cidades? Ninguém desconfiou que estava respirando restos
mortais, que a morte entrava pelas narinas e alojava-se, não nos pulmões, mas
nas almas? E agora? Estima-se que 85 mil pessoas perderam suas vidas ou estão
desaparecidas ao tentar atravessar o Mediterrâneo. Todos os dias, os jornais
trazem notícias das mortes no Mediterrâneo. Não é por desconhecimento que as
mortes acontecem. É uma política intencional que segue aprimorando seus métodos
de gestão da produção da morte das pessoas negras no Mediterrâneo. O que se
demanda da Comunidade Europeia já está previsto