sábado, 11 de junho de 2011

INTERNACIONALISMO IGNOTO




MARTINHO JÚNIOR

As guerras justas contra o fascismo, o colonialismo, o “apartheid” e suas sequelas, no quadro de luta em que foram estabelecidas em função de resgates históricos que só assim tiveram de acontecer, geraram a seu tempo correntes internacionalistas que estiveram presentes desde a Guerra de Espanha (que quanto a mim, pelo seu amplo significado e apesar se circunscrever a Espanha, foi tudo menos guerra civil), às guerras na África Austral, passando por um sem número de conflitos na América Latina.

De facto as culturas com espaço geo estratégico na Ibéria e nas duas margens do Atlântico, as culturas que acabaram por dinamizar resistências às culturas anglo saxónicas que se foram tornando dominantes, em muitos aspectos se foram tornando matriz e agora, no quadro da batalha das ideias, possibilitam o crescimento de filosofias segundo uma linha de pensamento cada vez mais fecunda e aferida ao homem e ao planeta do século XXI.

O internacionalismo hoje faz-se não mais de armas na mão, mas nas conquistas de cada dia no âmbito da educação, da saúde, da habitação, da água potável, da luta contra o subdesenvolvimento, do aprofundamento da democracia em direcção à cidadania e à participação, da atenção para com a natureza de forma a que se abandone uma das coisas que há de mais perverso no capitalismo, a voragem da natureza…

O internacionalismo hoje, pela via de acções de paz, contrasta com a proliferação de tensões, conflitos, guerras e agressões de toda a ordem que o império e seus aliados disseminam com o fito de alcançar domínio sobre as mais suculentas riquezas do planeta.

Contrasta ainda com o “imperialismo humanitário” que recorre a meios militares para se fazer sentir.

As correntes internacionalistas de então, aquelas que tiveram de se expressar de armas na mão, superaram por vezes barreiras e obstáculos difíceis para chegar ao terreno da luta; para eles nem o Atlântico impediu a sua deslocação.

A Espanha chegaram vários contingentes provenientes da América Latina, mas não tem sido fácil aos historiadores fazer o inventário dos corajosos voluntários, muito mais difícil se tornando dar a conhecer as histórias de suas vidas, as suas origens e as suas trajectórias.

Cuba terá fornecido o maior contingente internacionalista proveniente da América Latina presente em Espanha na luta contra o fascismo, em reflexo desde logo do ambiente sócio-político que se vivia na maior ilha do Caribe (http://www.juventudrebelde.cu/cuba/2011-04-22/valioso-aporte-de-cuba-en-la-lucha-antifascista/):

“Las indagaciones realizadas durante varios meses demuestran que los combatientes cubanos tenían varias procedencias: un destacamento principal, mayoritario, enviado desde La Habana, de manera escalonada, clandestina y bajo una feroz persecución, por el Partido Comunista.

Una segunda agrupación estaba integrada por revolucionarios y comunistas cubanos que se encontraban en el exilio, organizados en los clubes Julio Antonio Mella y Antonio Guiteras, de Nueva York, los cuales partieron de Estados Unidos, vinculados al batallón de comunistas norteamericanos Abraham Lincoln.

La tercera fuerza se formó con quienes residían en México, el Caribe, Centroamérica; y decenas de cubanos que se encontraban en España el 18 de julio de 1936, cuando se produjo el levantamiento franquista, y que ese mismo día combatieron junto al pueblo español en la toma del Cuartel de la Montaña, de Madrid, y en los combates que se desencadenaron en las calles de Barcelona.

Las pesquisas históricas de María Mercedes y Cirules han permitido encontrar la documentación que comprende los expedientes personales de decenas de combatientes cubanos”.

Provenientes de várias regiões de Espanha estiveram também presentes na América Latina, durante os conflitos, as revoltas e as revoluções contra as oligarquias do império, muitos espanhóis e seus descendentes.

Antes do início da luta de libertação, um cubano ignoto esteve presente entre aqueles que começaram a fermentar as ideias do movimento de libertação em Angola.

O 4 de Fevereiro em Angola por exemplo, foi acompanhado pela acção do sequestro do Santa Maria, realizado por um comando formado por portugueses e galegos enquadrados no “DRIL”, “Directório Revolucionário Ibérico de Libertação”.

O objectivo da tomada do Santa Maria era, entre outros, incentivar a sublevação das colónias portuguesas em África (http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=10017:soutomaior-o-comandante-que-mandou-calar&catid=21:antifascismo-e-anti-racismo&Itemid=51):

“Eran idealistas, claro, pero non foi unha aventura, nos manuscritos vese claramente que era un plan preparado e planificado con tempo e cun obxectivo claro – sublevar as colonias portuguesas de África para espallar este levantamento a Portugal e máis tarde a España”.

O navio, que havia sido rebaptizado de Santa Liberdade, nunca chegaria a Luanda, todavia provocou a atracção a Angola de muitos jornalistas que a 4 de Fevereiro presenciaram o episódio que é por muitos considerados como o início da luta armada.

Aqueles que compuseram o comando do efémero “DRILL” ficaram pela América Latina e pela península Ibérica, tendo alguns deles continuado com a luta até aos nossos dias, entre eles o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, uma referência para os progressistas de todo o mundo (Assalto ao Santa Maria há 50 anos - http://www.alentejopopular.pt/noticias.asp?id=6036).

Em 1975 as Forças Armadas Revolucionárias de Cuba vieram para Angola, dando a sua contribuição para a derrota da agressão militar de Henry Kissinger e da CIA, conforme se pode constatar com o depoimento de John Stockwell, o chefe da CIA na operação contra Angola.

Desse modo Cuba Revolucionária dava o seu contributo na saga de resgates de que sempre se empenhou, inscrevendo a sua acção sobretudo nas nações que compõem hoje o que foi a antiga rota dos escravos.

A “Operação Carlota”, o nome é duma escrava combatente das Antilhas, teve o seu lugar e hora, pondo fim ao tempo colonial e dando início à luta contra o “apartheid” na África Austral.

O exemplo de Cuba motivou internacionalistas de outras paragens numa altura em que o Presidente Agostinho Neto proclamava que “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul está a continuação da nossa luta”.

Na memória dos progressistas de todo o mundo estavam vivas as imagens do golpe de Pinochet contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e a oportunidade em África soou como uma das respostas viáveis perante o fascismo e as ditaduras filiadas ao império.

Há 34 anos em Angola “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul está a continuação da nossa luta” não eram palavras de ordem vãs e ressoavam por todo o mundo.

Com ano e meio de independência a República Popular de Angola assumia-se como “trincheira firme da Revolução em África” e servia como plataforma segura àqueles que mais a sul lutavam pela liberdade, a independência e a democracia, na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul.

De entre as muitas iniciativas, o Comandante Iko Carreira, então Ministro da Defesa e o Comandante N’Zagi da DISA, haviam estabelecido o Campo de Instrução da Funda, conseguindo algo inédito – pela primeira vez, numa mesma instalação, se concentram efectivos do “People Liberation Army of Namíbia” (“PLAN”) da SWAPO e do “Umkhonto we Sizwe”, “a Lança da Nação”, o braço armado do ANC da África do Sul.

O corpo instrutor era comandado por um internacionalista português, Eduardo Cruzeiro, que utilizava o pseudónimo de “Alex” e era formado por alguns angolanos, o moçambicano Falume e um italiano.

Os recentemente formados Ministério da Defesa e a DISA cumpriam a estratégia do movimento de libertação para que a África Austral se libertasse do fascismo, do colonialismo, do “apartheid” e de suas sequelas; nesses anos de luta viveu-se uma das utopias que pelo menos em parte se viria a consumar.

O “PLAN” colocou na Funda um contingente de entre 120 a 150 homens e o ANC de cerca de 25; enquanto o primeiro pretendia aumentar capacidades de guerrilha rural em ambientes abertos de savana e semi desérticos, o segundo pretendia conhecer técnicas de guerrilha urbana, virada para as grandes cidades da África do Sul.

No campo da Funda os dois destacamentos distinguiam-se sob os pontos de vista sócio-culturais: enquanto o efectivo do “PLAN” era formado por jovens recrutados em áreas rurais sobretudo provenientes do norte do Sudoeste Africano ocupado, na sua esmagadora maioria camponeses pouco letrados, os efectivos do ANC eram compostos por jovens universitários de origem urbana, provenientes de várias cidades da África do Sul.

Os efectivos da SWAPO e do ANC que estiveram no Campo de Instrução da Funda, tiveram destino e sorte distintas.

No caso do efectivo da SWAPO contribuíram para o recrudescimento dos combates no norte da Namíbia, conforme espelha Peter Stiff em “The silent war”.

Os efectivos do ANC, sob orientação de Joe Slovo, Comandante da guerrilha do ANC, haveriam de ser disseminados por várias frentes.

Na República de Angola esse é apenas uma das muitas páginas mantidas ignotas que ilustram os primeiros anos da independência e a saga do internacionalismo.

O instrutor angolano que me passou esta curta história e deseja permanecer no anonimato, salientou-me o profundo entusiasmo que grassava nessa época e naquele Campo: “sentíamo-nos em plena juventude, como os nossos maiores”.

Foi esse entusiasmo, confidenciou-me, que se repercutiu a vários níveis das FAPLA e da DISA, por que a libertação era para se continuar, quaisquer que fossem os obstáculos e riscos a enfrentar.

Aqueles que sobreviveram aos combates e às vicissitudes da vida, serão hoje cidadãos dum leque de países, uns mais conhecidos que outros.

Dispersaram-se pelo mundo, fiéis ao seu passado e continuaram o caminho com sentido de vida onde quer que se encontrem.

O Campo de Instrução da Funda faz parte da história ignota de Angola e da África Austral.

Quantos internacionalistas não estarão ainda hoje ignorados?

De entre os ainda vivos, sabe-se que Eduardo Cruzeiro é cidadão português, digno de seu passado: nada recebeu em troca por causa da sua contribuição internacionalista muitas vezes com o risco da própria vida e sempre viveu de suas próprias actividades.

Martinho Júnior - 30 de Maio de 2011

*Foto: Campo de Instrução da Funda em Abril de 1976 – um dos pelotões do “PLAN” da SWAPO na hora matinal da educação física.

1 comentário:

Anónimo disse...

A foto foi tirada em Abril de 1977.

Pelo lapso as minhas desculpas.

Martinho Júnior.

Luanda.

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