Sílvia Caneco - i online
O cabo Morais não acredita em Deus mas naquele dia rezou. Os timorenses estavam armados com catanas, pedras, lanças e arcos e flechas como os índios. Eram dois grupos rivais à catanada, um monte de homens a lutar como primitivos, um enxame de fúria junto ao Estádio de Díli, no final de uma taça de futebol. A GNR, há pouco mais de dois meses no território, foi chamada ao local. Os militares tinham meios modernos anticonfrontos: capacetes, escudos, bastões, gás lacrimogéneo. Os grupos armados timorenses – rivais das zonas de Maliana e Baucau ligados às artes marciais – tinham os meios artesanais. Mas ganhavam em número de homens o que perdiam na modernidade das armas.
Eram mais, muitos mais. Xanana Gusmão aproximou-se deles e foi apedrejado. A GNR formou uma linha de contenção e teve uma granada aos pés que, por sorte, ou por uma razão técnica que ninguém sabe explicar, não deflagrou. O corpo de intervenção da GNR recebeu ordem de carga, mas foi retardando o uso da força. E o cabo Morais rezava, ciente de que as suas armas não travariam a velocidade das lanças de uma multidão. De repente, do nada, aconteceu o milagre: os timorenses largaram os chinelos de dedo e desataram a fugir de pés descalços. As ruas ficaram vazias de homens e de armas, resumidas a um cemitério de chinelos. O cabo Morais suspirou. Em memória dos acontecimentos, foi dado à artéria junto ao estádio e ao mercado de Díli o nome de Avenida Larga-o-Chinelo.
O cabo Morais partiu na primeira missão da GNR para Timor-Leste, em 2000, voltou ao país em 2006 e integrou na semana passada o último contingente português para o território. Abriu e irá fechar o ciclo num país a nascer.
Terra queimada
O major Oliveira também integrou o primeiro contingente do subagrupamento Bravo que saiu de Lisboa em Fevereiro de 2000. O comandante do Grupo de Intervenção de Ordem Pública (GIOP) da GNR ficou até 2002, quando acabou a missão nas Nações Unidas. E regressou em Maio de 2006, através de um pedido directo do governo timorense para fazer frente a uma situação de emergência. A retirada das Nações Unidas depois da independência não tinha sido bem organizada. A 28 de Abril de 2006 estalaram confrontos entre as Forças de Defesa de Timor-Leste e a polícia timorense, na sequência de conflitos entre grupos de timorenses de loromonu (dos distritos ocidentais) e de lorosae (do leste). Carros incendiados, janelas partidas à pedrada, polícias feridos à catanada. Mortos, casas queimadas. Timor-Leste estava do avesso, mais longe de ser um país. A independência podia perder.
O cabo Morais, o major Oliveira e outros militares da GNR aterraram em Baucau e foram recebidos em êxtase por uma multidão à espera de ser salva. “Foi a maior enchente que vi até hoje. As pessoas vinham com ramos de flores. Parecíamos deuses. Tiveram noção que éramos a única força que os podia ajudar”, recorda o cabo, entroncado e de poupa no cabelo, que traz já cinco experiências de missões em Timor e uma no Iraque.
Em Díli encontraram corpos, cinzas, o cheiro a terra queimada. Só em duas casas ainda resistia o telhado: o palácio do presidente e a embaixada da Austrália. Os edifícios que não ruíram totalmente ficaram torcidos com o calor dos fogos: era impossível renovar apenas o telhado, tinha de se reconstruir tudo de raiz. Grande parte dos timorenses tinha voltado a refugiar-se nas montanhas. Os que ficaram na cidade dormiam nos campos de refugiados ou no meio da estrada para aproveitar o calor do alcatrão. Mais de 170 mil pessoas (cerca de 17% dos habitantes do país) ficaram sem casa. A cidade era um enorme dormitório de desalojados.
Cães que comem luas
Seis anos antes, em 2000, quase não havia infra-estruturas. Só um enorme rasto de destruição, de anos de massacres e matanças. Timor-Leste era um país recém-nascido a tentar andar pelos seus pés. O que levava a polícia portuguesa à rua eram problemas de ordem pública, mas de outra natureza. Às vezes, dez altercações por dia. Depressa os militares se habituaram ao sinal de alarme: sempre que havia problemas, os timorenses batiam nos postes da luz, insistentemente. O pior era quando se chegava ao bairro e não se conseguia perceber o que tinha acontecido tal era a enchente e a desordem. “Não sabíamos se era a mulher que tinha gritado, o bebé que tinha chorado, se era violência doméstica ou alguém ferido”, conta o major Oliveira, antes da partida do aeroporto de Figo Maduro, a 11 anos de distância dos acontecimentos. Um dia, ao som dos paus a bater estridentemente nos postes, a GNR correu para dois bairros. Era noite cerrada, mais escura do que já era habitual na ilha onde desaguam crocodilos. Ninguém tinha sido morto ou ferido. Ninguém tinha partido para a luta. Os timorenses estavam apenas com receio de que o país deixasse de existir por causa de um eclipse lunar. Diziam que o cão tinha comido a lua. E estavam ali, debaixo de uma Lua tapada, a fazer barulho, para que o universo não se esquecesse deles.
Ponto de partida
O rosto do guarda Bruno Melo está distorcido pela angústia, como um puzzle desarrumado. Pela quinta vez desde que o filho nasceu vai partir numa missão. Pela terceira vez vai passar o Natal longe de casa. “É uma missão dentro de uma missão, para quem vai e para quem fica”, diz o guarda, sob o olhar atento do Bruno filho, de oito anos. O cenário que irá encontrar em Timor-Leste devia ser tranquilizador para quem já partiu para um Iraque a ferro e fogo, em 2004, um dia depois do atentado ao local onde a força portuguesa iria ficar instalada. Mas para Mónica, a mulher, nenhum lugar é seguro quando se vê um homem partir. “A família nunca se adapta.” Mónica enxuga as lágrimas e não é capaz de abandonar a sala do aeroporto até todo o contingente sair. Ao lado, o filho, com uma mala a tiracolo maior que ele, tem o rosto paralisado e triste do Menino da Lágrima.
O sargento-ajudante Gouveia segue pela primeira vez para Timor, mas não é novato em missões: em 2004 só não congelou os dedos no Iraque porque os recolheu debaixo do sovaco. Pertence à equipa de inactivação de explosivos e fala com o sangue-frio de quem não pode tremer na hora de desactivar um engenho. “Não temos tempo para ter medo. Chega-se ao local, evacua-se a área, faz-se um cordão de segurança, avalia-se o engenho e aplica-se a técnica mais adequada.” Na metade da ilha não andam a explodir bombas todos os dias, mas elas aparecem. A dificuldade maior é conseguir identificar os engenhos por baixo da ferrugem, de tão velhos que são.
A bordo do avião que leva o último contingente da GNR para Timor-Leste numa missão integrada nas Nações Unidas – já que por pedido directo do governo timorense a cooperação se deverá manter mas através de um acordo bilateral –, 33% dos 140 efectivos vão pela primeira vez numa missão. O alferes Simões tem 27 anos e a ânsia de partir para fora, motivado pelo exemplo de um irmão 15 anos mais velho, militar do Exército. O cabo Morais, que esteve seis meses em Timor-Leste e regressou nesta viagem, percebe o bichinho. Iniciou a vida militar nos pára-quedistas com 17 anos, aos 18 estava na Bósnia, já passou pelo Iraque e tem vontade de ir para o Afeganistão. “A minha mulher diz que sou frio. Não, estou é habituado a isto. Há quem diga que estamos formatados. Não é isso: estamos habituados. Quem vê de fora pensa: vais deixar o teu filho sozinho seis meses. Eu penso: vou cumprir a minha missão.”
A longa viagem
Aguentar 22 horas de avião é duro. Quando não se dorme joga--se às cartas e lê-se. Olha-se para a direita: José Rodrigues dos Santos. Olha-se para a esquerda: José Rodrigues dos Santos. Os militares ficam vidrados na narrativa do jornalista-escritor. Depois das refeições começa a corrida à casa de banho para lavar os dentes. Chega-se ao aeroporto de Banguecoque e corre-se para fazer a barba. Ninguém quer chegar com um ar desleixado à ilha. A comida, para alguns dos mais aficionados pelo ginásio, sabe a pouco: afinal a regra é ingerir 5 mil calorias por dia.
Contam-se histórias das missões anteriores e das viagens paradisíacas a outros sítios da Ásia. Imagina-se como estarão os colegas que lá ficaram seis meses e agora serão substituídos. Atira-se à jornalista: “Como volta com eles para cá, vai ver como estão grandes e descobrir o efeito Nestum.” A jornalista fica intrigada. Será algum nome de código? Na viagem de regresso esclarece a dúvida com o capitão. Como é difícil ter acesso a alguns alimentos em Timor-Leste, os militares compensam com Nestum Mel. Papa de manhã, à tarde e à noite.
A chegada e a partida
À chegada ao aeroporto de Díli, é hora das recepções e das despedidas. Para lá vai uma mulher, para cá voltam duas. Os timorenses, que têm fama de não tratar bem as suas mulheres, sabem tratar bem destas. “Têm muita curiosidade em saber o que fazemos aqui e que vida deixámos em Portugal”, conta a cabo Bernardete Rodrigues, tesoureira do 11.o contingente. A segunda mulher da missão, a tenente Quintas, 28 anos e linda e feminina como nunca julgámos poder ser uma militar, chora ininterruptamente na hora do adeus. “Quando saímos de Portugal temos a sensação de que estamos a interromper a nossa vida: quando voltarmos ela vai estar lá. Quando saímos daqui sentimos que deixamos uma parte de nós que dificilmente vamos ter de volta.”
Antes de entrar no avião, um momento obriga às gargalhadas. Depois das malas, pela passadeira rolante que liga a pista do aeroporto ao porão, sobem enormes sacos verdes, de plástico. Sob um bafo escaldante e húmido que varre Timor-Leste no primeiro mês das chuvas, os militares aproximam-se dos indonésios que trabalham no aeroporto e gritam: “Esses sacos não são para levar, são lixo.” Os indonésios fazem cara de poucos amigos e não cedem nem mesmo quando os restos caem dos sacos para a passadeira. “Não, não, o lixo não pode ficar cá, tem de voltar para de onde veio.”
Timor hoje
Esta terra que uns encontram e outros largam está a anos-luz do que era em 2000 ou 2006. Descobriu-se petróleo, o país prosperou. O governo distribuiu dinheiro pela população. A maioria dos timorenses usou-o para comprar carros ou motas, que levam sempre gente a mais. A capital, Díli, tem agora o trânsito caótico de uma metrópole e até um centro comercial – o Timor Plaza –, que destoa das tendas mal montadas de um lado e do outro da estrada. Está mais calma, mais civilizada. Mas quem deixa o país não confia na segurança a 100%.
A máquina funciona aos solavancos. Timor-Leste é instável, ferve. Dizem que é uma espécie de bomba-relógio. Uma das funções dos militares, além da formação da polícia timorense (PNTL), passa por garantir a segurança da procuradora e também do presidente. Em 2008, Ramos-Horta foi alvo de um atentado e nada o fazia prever. E 2012 traz um período crítico: eleições. “Antes vínhamos com o espírito de ajudar o país irmão. Agora é mais uma missão de diplomacia, de fazer sorrir. Mas nunca sabemos quando as coisas poderão mudar”, explica o cabo Morais. “O povo timorense sabe que se nas eleições isto descambar só há uma força que pode controlar a situação.” O país nascido da destruição e do massacre está a erguer-se pelos seus pés. As segundas eleições presidenciais de Timor independente serão o teste derradeiro.
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