Rebecca Murray/IPS, Cabul – Opera Mundi, com foto
Pesquisa indicou que as afegãs são as mulheres que mais correm riscos no mundo
Quando teve início a segunda Conferência de Bonn sobre o Afeganistão, em 5 de dezembro, organizações de mulheres afegãs batalharam para que fossem escutadas. Elas temem que a retirada da coalizão internacional implique também no desaparecimento de fundos para proteção e para delegação de autonomia das meninas e das mulheres.
Os direitos das mulheres continuam marginalizados no Afeganistão, mas em nenhum âmbito essa desigualdade é tão chocante como no fraco sistema judicial daquele país. A história de Yasmin* é um exemplo. A idade legal para se casar sendo mulher é 16 anos. Porém, quando ela tinha oito, sua família arranjou seu casamento com um homem de 60, em uma afastada região da província oriental de Nangarhar. Depois de quatro anos de infelicidade, Yasmin fugiu com um homem de sua aldeia por quem estava apaixonada.
Quando o casal foi preso por fugir e se casar, ela estava grávida. Teve seu filho na prisão. Já em liberdade conseguiu ser acolhida em um abrigo de Cabul, temendo que sua família e seu primeiro marido, agora com 70 anos, a localizassem e a matassem pela honra maculada.
“O primeiro passo previsto é seu divórcio, agora tem 18 anos e tem esse direito”, diz Huma Safi, responsável do programa de Mulheres pelas Mulheres Afegãs, uma organização que oferece abrigo e assistência legal e familiar. “O segundo passo será conseguir um casamento verdadeiro com seu segundo marido, por quem ela está apaixonada. O casamento também permitirá reduzir a sentença dele. E logo poderão viver juntos”, explica.
Quando teve início a segunda Conferência de Bonn sobre o Afeganistão, em 5 de dezembro, as mulheres afegãs batalharam para que fossem escutadas, uma década depois de a comunidade internacional ter se reunido na mesma cidade alemã para elaborar um roteiro para que aquele país, arruinado por décadas de guerras, construísse suas instituições sobre o fundamento dos direitos civis.
As prioridades da Bonn II, no marco da retirada das forças da coalizão internacional previsto para 2014, foram a transição da segurança, os diálogos de paz com o movimento islâmico Talibã e as futuras relações regionais. O Banco Mundial alertou sobre a dependência afegã da ajuda internacional, que chega a mais de 90% do seu orçamento, de 17,1 bilhões de dólares, e Bonn II foi um sinal das reduções que os doadores estão praticando.
Defensoras dos direitos das mulheres afegãs temem que seus projetos sofram as consequências dessa diminuição de recursos. Selay Gaffar, da Rede de Mulheres Afegãs, teve somente três minutos na conferência para pedir aos doadores que continuem apoiando a defesa de seus direitos. A declaração final da Bonn II relacionou brevemente a igualdade de gênero com a Constituição afegã em matéria de governança e de negociações de paz..
Nos últimos anos, as ativistas conseguiram adquirir consciência sobre os direitos de gênero e melhorar o acesso à educação e à saúde das mulheres, em especial nas áreas urbanas. Também foram criados abrigos, que acolhem por exemplo mulheres como Yasmin, libertadas da prisão e que não podem voltar a seu lar por conta da estigmatização. Mas seus habitantes tampouco se sentem seguras ali, nem têm liberdade de ir e vir.
Uma pesquisa da Thomson Reuters, divulgada em junho de 2011, classificou o Afeganistão como o país mais perigoso do mundo para as mulheres por conta da violência, da pobreza e da falta de assistência médica. “Entre 2001 e 2003 se prestou muita atenção nos direitos femininos, mas logo isso diminuiu”, indica Huma Safi. “Nossa principal preocupação é não voltar à situação de 15 anos atrás. Não apenas a do regime do Talibã, nem mesmo a de antes”, aponta. “Na guerra civil dos mujahidin, muitas mulheres foram violentadas”, explica. “As pessoas estavam tão cansadas do conflito, que fomos esquecidas pela comunidade internacional”.
Realidade nas prisões
Às vésperas da Bonn II, o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, perdoou Gulnaz, uma mulher de 21 anos estuprada e condenada por adultério, que deu à luz na prisão a um filho fruto da violência sexual que sofreu. A graça presidencial, no entanto, não é o habitual. A maioria das 700 mulheres reclusas nas sórdidas prisões afegãs foram condenadas por adultério ou zina (relações sexuais entre pessoas não casadas), um castigo comum por fugir de um casamento forçado ou do abuso crônico. Muitas estão presas com seus filhos.
“Há dois tipos de casos, com um monte de variações, que se escuta uma ou outra vez”, observa Heather Barr, pesquisadora da HRW (Human Rights Watch), com sede em Nova York. “Umas são mulheres muito jovens obrigadas a casar contra sua vontade e que fogem para evitar. Às vezes sozinhas e outras com ajuda de um homem, por quem não estão necessariamente interessadas”, descreve. “Outra categoria são as mulheres casadas, quase sempre contra sua vontade, que sofrem de violência doméstica, geralmente física, mas às vezes verbal”, indica Barr. “Se escapam, esses casos costumam constituir zina quando há um homem acompanhando”, acrescenta.
Segundo Barr, apesar de todas as mulheres que entrevistou terem advogado, a qualidade da defesa não era boa, e os julgamentos precisavam de investigação e de provas. “Às vezes o homem consegue o que quer mediante suborno, mas ela não”, aponta. “A zina está no Código Penal, mas a fuga não. Quando comentei esse fato com juízes e advogados, me responderam que ao ir embora as mulheres se arriscam a incorrer” nesta falta, relata Barr. Grande parte da população ainda apela para mecanismos tradicionais da justiça comunitária fora do sistema formal, segundo a HRW.
Em 2009, Karzai promulgou a Lei Xiita da Família, que incluía a autorização do casamento de adolescentes de 14 anos e o direito dos maridos de forçar sexualmente suas esposas. Mas, após protestos da sociedade civil e da comunidade internacional, a norma foi modificada. Naquele mesmo ano, o governo aprovou a lei de Eliminação da Violência contra as Mulheres, que criminaliza atos como o casamento infantil ou forçado e o estupro.
Uma análise da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre sua implementação, divulgada em novembro, ressalta: “Funcionários do sistema judicial começaram a aplicar a lei em muitas partes do país, mas seu uso constitui uma ínfima proporção da forma como o governo atende os casos de violência contra a mulher”.
Mulheres como Zuhra* continuam sendo condenadas. Aos 12 anos, vivia em Cabul quando lhe casaram com um homem mais velho que já tinha três esposas. Ele a obrigou a se prostituir diariamente até que a casa onde moraram foi invadida. Ela foi detida e ficou presas por dois anos. Agora tem 17 e vive em um abrigo. “Conseguimos que se divorciasse, mas agora quer se casar outra vez. Trabalhamos para que entenda que tem tempo, não há afobamento”, relata Huma Safi. “Não a culpo, quando saem da prisão, sentem que com um marido estarão protegidas”.
* Os nomes das mulheres foram trocados para proteger suas identidades.
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