terça-feira, 9 de outubro de 2012

Portugal: A LIÇÃO DO CONGRESSO

 


Daniel Oliveira – Expresso, opinião, em Blogues
 
Enquanto as mais altas individualidades faziam uma celebração privada do 5 de Outubro, duas mil pessoas, vindas de todo o País, reuniram-se, durante 10 horas, na Aula Magna, em Lisboa, no Congresso Democrático das Alternativas. Só isto já é extraordinário: duas mil pessoas perderam o seu feriado, num fim de semana prolongado com bom tempo, para discutir política. Sem que nenhum partido o tivesse mandado fazer. Por si. Fora da capital, foram elas que se organizaram e se juntaram para pagar as camionetas que as trouxeram. O Congresso foi pago, até ao último cêntimo, com contributos dos congressistas.
 
As pessoas que estiveram na Aula Magna, e nas cinco sessões temáticas que se realizaram, eram pessoas que raramente se podem encontrar juntas. A esmagadora maioria sem partido, muitas dos vários partidos de esquerda. Gente de todas as idades, de todo o País, com e sem experiência política.
 
Não foram ali para protestar. Nem sequer foram ali para falar de Passos Coelho. Foram para pensar no dia seguinte a Passos Coelho. Porque sabem que esse dia só valerá a pena se para ele houver uma alternativa credível e praticável. Não foram falar de coligações ou estratégias eleitorais. Foram falar do conteúdo da política. De soluções.
 
Antes de mais, para discutir como nos veremos livres de um memorando que sufoca a nossa economia, o emprego, as contas públicas e a democracia. Como se renegoceia a dívida e que efeitos a denúncia do memorando e essa renegociação podem ter. Os positivos e negativos, sem esquecer ou ignorar qualquer um deles, mas recusando a chantagem do medo. E como se pode lidar com esses efeitos. Depois, o que se tem fazer com um sistema político obviamente bloqueado. Por fim, o querem dos serviços públicos, das leis laborais, da economia. Não me estenderei, por agora, nestes pontos. Eles estão nos documentos do Congresso (http://www.congressoalternativas.org/p/documentacao.html) e não devo ser eu a fazer interpretações sobre uma declaração discutida, emendada e aprovada. Resultado de centenas de contributos escritos por especialistas e não especialistas, num processo democrático exemplar. Mais tarde, com a coisa mais digerida, tentarei ir aos temas. Até porque o Congresso me ajudou, como terá ajudado a outros, a sedimentar umas posições e a alterar outras.
 
Poucas vezes, na minha já razoável experiência política, vi pessoas saírem de um acontecimento deste género tão satisfeitas. Com dúvidas sobre o que acontecerá depois disto. O que será feito com o seu trabalho. Mas satisfeitas. Porque não foram ali ouvir um comício com frases feitas. Porque não assistiram a um momento de aclamação de líderes ou de unanimismos. Ouviram opiniões de economistas que defendem caminhos diferentes para chegar ao mesmo sítio. Ouviram políticos que costumam estar de costas voltadas. E, muito mais importante, ouviram outros cidadãos sem notoriedade mediática e com percursos sociais, profissionais e políticos diferentes que tinham coisas pensadas para dizer. Não meros desabafos. Propostas. Umas bem estruturadas, outras nem por isso. Mas todas nascidas nas suas cabeças e não resultado de qualquer diretiva partidária.
 
Os que organizaram este congresso, tivessem ou não partido, tomaram uma decisão: não hostilizariam nenhum partido à esquerda, não pediriam autorização para fazer as coisas como fizeram a nenhum partido à esquerda. Mostraram respeito e exigiram respeito. E deixaram claro que este congresso era dos congressistas e para o País, e não para alimentar a agenda partidária de ninguém. As pessoas sentiram isto. Coisa rara: não se sentiram usadas. E corresponderam.
 
Uma das coisas que mais me impressionou é que, tirando um incidente isolado e imediatamente contrariado de forma clara pela generalidade da plateia, toda a gente fez um enorme esforço para não repetir as guerras de sempre entre as capelinhas da esquerda. Nos debates e votações notava-se um esforço real de procurar, no respeito pela opinião dos outros, os denominadores comuns. Sabendo que eles não são, nunca podem ser, a opinião exata de cada um. É um exercício difícil, mas muito pedagógico para todos. E ao corresponderem a este desafio não deixaram qualquer espaço de manobra aos que ali quisessem fazer ajustes de contas. Recusaram propostas que impedissem a convergência. E recusaram, com uma votação esmagadora, a proposta de transformar aquilo numa associação política para criar um partido. Não era a isso que vinham.
 
Aquelas duas mil pessoas deram, naquele feriado de sol, uma enorme lição a muitos dirigentes políticos. Sem precisarem de lhes dizer nada. Apenas pelo exemplo. Porque não ficaram à espera de ninguém para começar um processo de convergência na construção de uma alternativa, deixando claro que não estão dispostas a esperar pelo entediante jogo de xadrez a que a vida partidária tantas vezes se dedica. Porque souberam dialogar, mostrando que é muito mais o que as une do que o que as separa e que é possível que uma conversa comece pelo conteúdo da política e não pela distribuição de lugares ou pela enésima revisitação de todas as guerras passadas. Porque participaram democraticamente nas decisões, como cidadãos e não mais do que cidadãos, recusando a menorização a que tantas vezes têm sido sujeitas. Porque recusaram o populismo contra os partidos e a democracia, mostrando que o País não é um enorme "Fórum TSF". Porque foram exigentes com a sua própria participação naquele congresso, recusando o papel de meros clientes de ofertas eleitorais. E a satisfação das pessoas era consigo próprias e não com um novo chefe ou um salvador. Mostraram o que muitos já deviam ter percebido: que podem mais, aguentam mais, do que a pura propaganda. Até aguentam a dúvida, a incerteza das escolhas que fazem, a responsabilidade de as fazer.
 
Não deixou de ser, no entanto, perturbante ver como a comunicação social (sendo justo, nem toda), sobretudo a televisiva, não conseguiu sair do esquema do costume. Naquele congresso, para muitos jornalistas, só contavam as personalidades. E, acima de tudo, as personalidades dos partidos. A partidocracia é um hábito que a comunicação social alimenta e que alimenta a preguiça da comunicação social. E a generalidade da comunicação social não conseguiu sair das pessoas do costume, das conversas do costume, dos esquemas do costume. Não percebeu o que ali se passou. Estava fora do seu esquema mental. E ali passou-se, sabe quem lá esteve, uma coisa completamente nova. Que nunca tinha, com esta dimensão e este grau de abrangência e participação, sido feita na nossa democracia.
 
Não me interpretem mal. Não só não acho que os partidos sejam um problema para a democracia, como acho que são centrais para a sua saúde. Mas até eu, que sou militante de um, sei que não chegam. E que sem a participação ativa e democrática dos cidadãos, militantes ou não de qualquer partido, os partidos se viram para dentro e tratam apenas da sua própria sobrevivência.
 
Quando digo que aquelas duas mil pessoas deram uma lição a muitos dirigentes políticos, não é porque tenham agido contra eles. É porque mostraram como se pode fazer. Que os dirigentes políticos de esquerda - porque era obviamente nesse espaço político que o Congresso se situava - tenham tomado notas. Não das perdas ou dos ganhos. Mas da forma e do conteúdo. Melhores notas do que as da maioria dos jornalistas que lá estiveram.
 
Declaração de interesses: sou membro da Comissão Organizadora e Comissão Executiva do Congresso Democrático das Alternativas.
 

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