Daniel Oliveira –
Expresso, opinião, em Blogues
Enquanto as mais
altas individualidades faziam uma celebração privada do 5 de Outubro, duas mil
pessoas, vindas de todo o País, reuniram-se, durante 10 horas, na Aula Magna,
em Lisboa, no Congresso Democrático das Alternativas. Só isto já é extraordinário:
duas mil pessoas perderam o seu feriado, num fim de semana prolongado com bom
tempo, para discutir política. Sem que nenhum partido o tivesse mandado fazer.
Por si. Fora da capital, foram elas que se organizaram e se juntaram para pagar
as camionetas que as trouxeram. O Congresso foi pago, até ao último cêntimo,
com contributos dos congressistas.
As pessoas que
estiveram na Aula Magna, e nas cinco sessões temáticas que se realizaram, eram pessoas
que raramente se podem encontrar juntas. A esmagadora maioria sem partido,
muitas dos vários partidos de esquerda. Gente de todas as idades, de todo o
País, com e sem experiência política.
Não foram ali para
protestar. Nem sequer foram ali para falar de Passos Coelho. Foram para pensar
no dia seguinte a Passos Coelho. Porque sabem que esse dia só valerá a pena se
para ele houver uma alternativa credível e praticável. Não foram falar de
coligações ou estratégias eleitorais. Foram falar do conteúdo da política. De
soluções.
Antes de mais, para
discutir como nos veremos livres de um memorando que sufoca a nossa economia, o
emprego, as contas públicas e a democracia. Como se renegoceia a dívida e que
efeitos a denúncia do memorando e essa renegociação podem ter. Os positivos e
negativos, sem esquecer ou ignorar qualquer um deles, mas recusando a chantagem
do medo. E como se pode lidar com esses efeitos. Depois, o que se tem fazer com
um sistema político obviamente bloqueado. Por fim, o querem dos serviços
públicos, das leis laborais, da economia. Não me estenderei, por agora, nestes
pontos. Eles estão nos documentos do Congresso
(http://www.congressoalternativas.org/p/documentacao.html) e não devo ser eu a
fazer interpretações sobre uma declaração discutida, emendada e aprovada.
Resultado de centenas de contributos escritos por especialistas e não
especialistas, num processo democrático exemplar. Mais tarde, com a coisa mais
digerida, tentarei ir aos temas. Até porque o Congresso me ajudou, como terá
ajudado a outros, a sedimentar umas posições e a alterar outras.
Poucas vezes, na
minha já razoável experiência política, vi pessoas saírem de um acontecimento
deste género tão satisfeitas. Com dúvidas sobre o que acontecerá depois disto.
O que será feito com o seu trabalho. Mas satisfeitas. Porque não foram ali
ouvir um comício com frases feitas. Porque não assistiram a um momento de
aclamação de líderes ou de unanimismos. Ouviram opiniões de economistas que
defendem caminhos diferentes para chegar ao mesmo sítio. Ouviram políticos que
costumam estar de costas voltadas. E, muito mais importante, ouviram outros
cidadãos sem notoriedade mediática e com percursos sociais, profissionais e
políticos diferentes que tinham coisas pensadas para dizer. Não meros
desabafos. Propostas. Umas bem estruturadas, outras nem por isso. Mas todas
nascidas nas suas cabeças e não resultado de qualquer diretiva partidária.
Os que organizaram
este congresso, tivessem ou não partido, tomaram uma decisão: não hostilizariam
nenhum partido à esquerda, não pediriam autorização para fazer as coisas como
fizeram a nenhum partido à esquerda. Mostraram respeito e exigiram respeito. E
deixaram claro que este congresso era dos congressistas e para o País, e não
para alimentar a agenda partidária de ninguém. As pessoas sentiram isto. Coisa
rara: não se sentiram usadas. E corresponderam.
Uma das coisas que
mais me impressionou é que, tirando um incidente isolado e imediatamente
contrariado de forma clara pela generalidade da plateia, toda a gente fez um
enorme esforço para não repetir as guerras de sempre entre as capelinhas da
esquerda. Nos debates e votações notava-se um esforço real de procurar, no
respeito pela opinião dos outros, os denominadores comuns. Sabendo que eles não
são, nunca podem ser, a opinião exata de cada um. É um exercício difícil, mas
muito pedagógico para todos. E ao corresponderem a este desafio não deixaram
qualquer espaço de manobra aos que ali quisessem fazer ajustes de contas.
Recusaram propostas que impedissem a convergência. E recusaram, com uma votação
esmagadora, a proposta de transformar aquilo numa associação política para
criar um partido. Não era a isso que vinham.
Aquelas duas mil
pessoas deram, naquele feriado de sol, uma enorme lição a muitos dirigentes
políticos. Sem precisarem de lhes dizer nada. Apenas pelo exemplo. Porque não
ficaram à espera de ninguém para começar um processo de convergência na
construção de uma alternativa, deixando claro que não estão dispostas a esperar
pelo entediante jogo de xadrez a que a vida partidária tantas vezes se dedica.
Porque souberam dialogar, mostrando que é muito mais o que as une do que o que
as separa e que é possível que uma conversa comece pelo conteúdo da política e
não pela distribuição de lugares ou pela enésima revisitação de todas as
guerras passadas. Porque participaram democraticamente nas decisões, como
cidadãos e não mais do que cidadãos, recusando a menorização a que tantas vezes
têm sido sujeitas. Porque recusaram o populismo contra os partidos e a
democracia, mostrando que o País não é um enorme "Fórum TSF". Porque
foram exigentes com a sua própria participação naquele congresso, recusando o
papel de meros clientes de ofertas eleitorais. E a satisfação das pessoas era
consigo próprias e não com um novo chefe ou um salvador. Mostraram o que muitos
já deviam ter percebido: que podem mais, aguentam mais, do que a pura
propaganda. Até aguentam a dúvida, a incerteza das escolhas que fazem, a
responsabilidade de as fazer.
Não deixou de ser,
no entanto, perturbante ver como a comunicação social (sendo justo, nem toda),
sobretudo a televisiva, não conseguiu sair do esquema do costume. Naquele
congresso, para muitos jornalistas, só contavam as personalidades. E, acima de
tudo, as personalidades dos partidos. A partidocracia é um hábito que a
comunicação social alimenta e que alimenta a preguiça da comunicação social. E
a generalidade da comunicação social não conseguiu sair das pessoas do costume,
das conversas do costume, dos esquemas do costume. Não percebeu o que ali se
passou. Estava fora do seu esquema mental. E ali passou-se, sabe quem lá
esteve, uma coisa completamente nova. Que nunca tinha, com esta dimensão e este
grau de abrangência e participação, sido feita na nossa democracia.
Não me interpretem
mal. Não só não acho que os partidos sejam um problema para a democracia, como
acho que são centrais para a sua saúde. Mas até eu, que sou militante de um,
sei que não chegam. E que sem a participação ativa e democrática dos cidadãos,
militantes ou não de qualquer partido, os partidos se viram para dentro e
tratam apenas da sua própria sobrevivência.
Quando digo que
aquelas duas mil pessoas deram uma lição a muitos dirigentes políticos, não é
porque tenham agido contra eles. É porque mostraram como se pode fazer. Que os
dirigentes políticos de esquerda - porque era obviamente nesse espaço político
que o Congresso se situava - tenham tomado notas. Não das perdas ou dos ganhos.
Mas da forma e do conteúdo. Melhores notas do que as da maioria dos jornalistas
que lá estiveram.
Declaração de
interesses: sou membro da Comissão Organizadora e Comissão Executiva do
Congresso Democrático das Alternativas.
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