Pedro Bacelar de
Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
É um eficaz
lenitivo para as amarguras do presente e talvez lá encontre uma chave para
descodificar as últimas piruetas desta atabalhoada governação. Vá ao cinema e
divirta-se com "A melhor oferta", último filme do realizador italiano
Giuseppe Tornatore.
O negócio de Virgil
Oldman, antiquário famoso, é a autenticidade das obras de arte que ele mesmo
certifica, disputadas pela "melhor oferta" nos seus concorridos
leilões. Giuseppe Tornatore não ensaia a desconstrução das clássicas
contraposições entre "falsidade" e "autenticidade", entre
"cópia" e "original". Apenas pondera a relatividade dos
conceitos, a irresistível tentação de os manipular, o pântano das aparências
onde se acaba por confundir a verdade com a ilusão - no cinema, na arte, na
vida. Vítima dos ardis que ele próprio engendrou, o antiquário, sentado à mesa
de um café de Praga, no plano final, ainda aguarda o cumprimento da promessa de
"amor autêntico" por que se perdeu!
Tanta paixão e
otimismo não são capazes de gerar, seguramente, os nossos governantes. O
Governo ainda não se demitiu nem foi demitido, não aceitava sequer
remodelar-se, há bem pouco tempo, nunca reconheceu os seus inumeráveis
fracassos nem se propôs mudar as suas políticas. Porém, passo a passo, a
pretextos diversos, foram caindo ministros e secretários de Estado que foram
sendo substituídos por novos ministros e secretários de Estado que até poucos
dias antes da cerimónia solene da tomada de posse, ainda escreviam coisas muito
críticas e ácidas contra essa mesma governação a que repentinamente se
converteram, sem o esforço de exibir algum arrependimento nem sequer de
submeter mera nota justificativa... Pelo contrário, animados pelo entusiasmo
dos recém-convertidos, novos e velhos ministros e secretários de Estado
multiplicam apelos patéticos a impossíveis consensos, afirmam um genuíno
empenhamento de lançar "pontes pessoais" para os membros da Oposição,
anunciam "planos de crescimento económico" com novos fundos que
pareciam estar esquecidos e com descarada ingenuidade proclamam-se abertos aos
contributos da Oposição para o desenho dos novos "pacotes fiscais"
que vão salvar a economia!
Quando a Oposição
denunciava as políticas de austeridade que levaram as empresas à falência e
continuam a mandar milhares de trabalhadores para o desemprego, destruindo a
economia e empobrecendo o país, o Governo de Passos Coelho, do amigo Relvas e
do poderoso Gaspar, com a cumplicidade da maioria parlamentar e da presidência,
respondia com o aumento dos impostos, os cortes dos salários e das pensões, e pedia
novos sacrifícios que afirmava indispensáveis para satisfazer os credores e
reconquistar a credibilidade internacional, incontornáveis pressupostos do
desejado "regresso aos mercados" e à prosperidade perdida.
Paradoxalmente, embora cada vez mais distante dos objetivos que se propunha
atingir, somando irrisórias poupanças na despesa pública à custa de medidas
extraordinárias e ilegais, depois de exorcizar os demónios do poder judicial,
veio o Governo e o sempre "remodelável" ministro da Economia anunciar
esta semana novos créditos para as empresas, um novo banco de fomento para
incentivar o investimento, o ansiado alívio fiscal.
Uma estranha
opacidade tomou conta do nosso regime democrático onde a política degenerou na
mais tosca falsificação. Os cenários desta farsa mudam ao sabor das
conveniências, substituem-se à velocidade da premência de cada conjuntura, como
um autómato comandado de Berlim ou Bruxelas, de Belém ou São Bento, numa
democracia sem cidadãos, sem respeito pelos representados, sem causa, sem
motivo, imaculada e sem destino. O palácio renascentista - com a sua herdeira
invisível, as peças do autómato habilmente reconstruído, o catálogo do espólio
já pronto para o leilão - não era afinal mais que um armazém alugado a uma
falsa produtora cinematográfica. Uma metáfora do próprio filme de Tornatore
senão da própria Itália de hoje ou deste "contrafeito" Portugal.
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