Daniel Oliveira - Expresso, opinião
Em 2008 um
tribunal do Funchal condenou-me por ter, num artigo publicado no
"Expresso" , apelidado Alberto João Jardim de "palhaço".
Este artigo surgiu como resposta a afirmações do presidente do Governo Regional
da Madeira em que este dizia que vários jornalistas eram "filhos da
puta" e "bastardos", termos bem mais violentos do que o que teve
na resposta.
Quando fui
condenado foi referido que o visado pelo meu ataque se tinha sentido
"stressado". No julgamento esteve até presente um médico de Jardim
para o comprovar. Ou seja, o mais insultuoso dos políticos nacionais sente-se
"stressado" quando o insultam. Usando da sua imunidade, distribui
insultos por toda a gente e proíbe que lhe seja dada qualquer resposta, não
hesitando mesmo em mandar levantar a mesma imunidade a deputados regionais que
o enfrentem. O caso de Jardim, recordista nacional no número de processos
que pôs a jornalistas e políticos por difamação e ofensa ao bom nome, demonstra
bem a perversidade da nossa lei e da interpretação que os magistrados fazem
dela.
Fui condenado ao
pagamento de multa de 2000 euros que, em recurso para Lisboa, foi reduzida para
500 euros. Uma multa relativamente baixa para o que os tribunais nacionais
costumam aplicar nestes casos. É importante referir que todos os casos que
conheço em que os condenados recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos acabaram numa condenação de Portugal por desrespeito à liberdade de
expressão, de opinião e de imprensa. Ou seja, na ponderação de dois valores
fundamentais - liberdade de expressão e direito ao bom nome - a justiça
portuguesa tende a negligenciar o primeiro. O que, conhecendo a história de Portugal
e sabendo que o sistema de justiça quase não mudou depois do 25 de Abril, não
me espanta. O "respeitinho" pelo poder continua a ser mais
importante do que a liberdade de opinião.
Num outro processo,
lembro-me de ter à minha frente uma procuradora que me dizia que também não
gostaria que eu me referisse a ela como me referi a um político com
responsabilidades. Tive de ser eu a explicar à magistrada que naquele processo não
estávamos a analisar o gosto de cada um - ninguém gosta de ser criticado de forma
mais crua -, mas, sendo um processo crime, da possibilidade de punir
criminalmente quem faz essa critica. Não estávamos a julgar o gosto de
ninguém, mas o direito da justiça me mandar, neste caso, calar. Deveria ser
claro para alguém que administra a justiça a distinção entre as duas coisas.
Mas não é. Nem para os magistrados nem para a generalidade das pessoas, que
ainda falam de "ordinarice" e "falta de respeito" quando
defendem a condenação nestes processos.
Segundo o artigo
180º do Código Penal a conduta de difamação não é punível quando "a
imputação for feita para realizar interesses legítimos" e "o agente
provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé,
a reputar verdadeira" (excluindo-se, e bem, a imputação de facto relativo
à intimidade da vida privada e familiar). Se é fácil provar que alguém é
"ladrão" ou "corrupto" (se não é fácil, não se diz), não
vejo como se pode provar que alguém é "palhaço". É matéria de tal
forma subjetiva que damos à discricionariedade de um juiz e das suas convicções
sobre a pessoa que se sente injuriada um poder excessivo. A lei deveria, por
isso, como acontece noutras legislações, limitar estes processos à
imputação de factos e comportamentos passíveis de ser comprovados ou
desmentidos.
Na realidade, a lei
é de tal forma susceptível de interpretações contraditórias e está de tal forma
dependente da sensibilidade de cada juiz que temos, sobre o mesmo insulto -
"palhaço" -, decisões judiciais incompatíveis entre si.
Em 2007, o Tribunal
da Relação do Porto, defendia, em acórdão : "A expressão usada, mesmo concedendo
que o assistente se considerou ofendido, não atinge, sequer, o limiar da
relevância penal." E recordava um acórdão de 2002, em que se determinava
que "o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda
ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo
essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço
por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a
vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos,
em vez de garantir a paz social, que é a sua função".
A mesmíssima
justiça portuguesa condenou-me a mim pelo uso da mesmíssima expressão. Terá
pesado o facto de, em Tribunal, eu ter mantido até ao fim tudo o que escrevi,
não ter manifestado qualquer arrependimento (e assim continuo) e ter explicado
que o uso que dei à expressão era aquele que todos poderiam compreender: que
Alberto João Jardim era uma figura ridícula que, com as suas palavras e os
seus atos, desprestigiava o lugar que ocupava e deveria ser razão de vergonha
para aqueles que representa.
A verdade é que
esta instabilidade na jurisprudência nacional torna o uso da liberdade de
expressão num enorme risco de imprevisíveis consequências. Sobretudo quando o
visado é uma figura da política nacional.
Considero Aníbal
Cavaco Silva uma personagem cómica e burlesca, que não deve ser
levada a sério e que muda, ao contrário do que costuma ser dito, com muita
frequência de opinião. Definições que cabem no que surge no Dicionário de
Língua Portuguesa da Porto Editora para a palavra "palhaço". Acho
isto com base em factos como a recente evocação de Nossa Senhora de Fátima
para a provação da 7ª Avaliação da troika, a invenção paranoica de
uma conspiração política que atribuía ao anterior primeiro-ministro a
existência de escutas em Belém (um verdadeiro caso de difamação e injúria
que, não fosse a sua imunidade, o deveria ter levado a julgamento) ou frases
como "ontem eu reparava no sorriso das vacas". E acho que com o
seu comportamento desprestigia o cargo que ocupa e o País. Por isso, parece-me o
uso da expressão "palhaço" para o definir politicamente legitimo.
Mas o mais grave é
o facto da lei portuguesa considerar, no artigo 328º do Código Penal,
que "quem injuriar o Presidente da República, ou quem
constitucionalmente o substituir, é punido com pena de prisão até três anos ou
com pena de multa". Ao agravar a pena por difamação quando o alvo é chefe
de Estado o poder político mais não fez do que tentar proteger-se a si próprio
da critica, pondo o cidadão que ocupa o lugar de Presidente acima dos
restantes. Que o está, é uma evidência que as regras para o seu próprio
julgamento evidenciam. Nada tenho contra. Que o esteja quando falamos das
críticas políticas ou pessoais de que pode ser alvo é que me parece um sinal de
atraso democrático. Pelo contrário, o Presidente, tendo em conta as suas
responsabilidades, deve estar mais sujeito, e não menos, à crítica pública. Confundir
a pessoa que ocupa o cargo com o cargo que ela ocupa não é digno de uma
democracia liberal e republicana. Aceito outra forma de ver a vida democrática.
Mas esta é a minha: da mesma forma que as críticas à Assembleia da República
não são o mesmo que as críticas ao deputado x ou y, as críticas à Presidência
da República não são o mesmo que as críticas a Aníbal Cavaco Silva.
Mas vou mais longe.
Sou dos que pensam que a nossa liberdade de expressão só deve ser limitada
na estrita necessidade de defender valores mais relevantes. Caluniar alguém,
atribuindo-lhe ações graves ou ilegais inexistentes que põem em causa o direito
ao seu bom nome, deve ser crime. Apelar, através de palavras, a atos, violentos
ou não, que possam pôr em causa a liberdade e os direitos dos outros, deve ser
crime. Criminalizar opiniões mais ou menos truculentas, que apenas
correspondem a uma apreciação política sobre alguém, é fomentar a censura e a
autocensura.
Nada mudou na vida
do cidadão Cavaco Silva por ser chamado de "palhaço". Tudo muda na
vida da democracia portuguesa quando damos aos juízes o direito de decidirem
que apreciações temos e podemos expressar sobre um detentor de um cargo
público. Dirão: chamar "palhaço" a um Presidente é uma manifestação
de desrespeito pela pessoa e pelo cargo. Mas porque não posso eu ter pouca
consideração por Cavaco Silva ou até, o que não é o caso de Miguel Sousa
Tavares e o meu, pelo cargo, se for, por exemplo, monárquico? Deve a lei
determinar as minhas convicções e opiniões quando elas não põem em causa a
nossa vida colectiva e os direitos essenciais dos restantes cidadãos? Não
me parece.
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