Tomás Vasques – Jornal i, opinião
A falta de cultura
democrática de governantes e a apatia de governadosé uma mistura explosiva para
o regime
Paira no ar uma
despudorada acalmia política. Uma espécie de prolongamento da languidez própria
do mês de Agosto. A tutela temporária da troika, só por si, não justifica este
estado de letargia; nem a proximidade de eleições autárquicas explica esta
condescendência com a acelerada perda de ética e de cultura democrática. O
governo renovado, saído da crise de Julho, quando as lutas intestinas atingiram
o "ponto de ruptura" entre Paulo Portas e Passos Coelho, não alterou
uma vírgula à estratégia, às políticas, à estética e ao discurso enquistado,
prosseguidos desde a tomada de posse. A nova estrutura e os novos equilíbrios
internos entre os parceiros da coligação que nos governa não produziram
qualquer alteração que se visse. É o mesmo governo, rigorosamente. Mas,
estranhamente, passa pelos seus desaires e desvarios, como quem passa entre os
pingos da chuva, sem decoro, nem rebates de consciência. Com as mais variadas
cumplicidades na comunicação social, é certo. Sobretudo daqueles conselheiros
Acácio que, invariavelmente, começam a ladainha, a dizer: "não concordo,
mas não há outra solução".
O que aconteceu no
último mês - o mês das férias - dava pano para mangas em qualquer democracia
liberal que tivesse um mínimo de pergaminhos. Maria Luís Albuquerque, a
meia-ministra das Finanças nas relações com a troika (como o
vice-primeiro-ministro Paulo Portas deixou claro na recente visita de cortesia
aos nossos credores) passou incólume, sempre sorridente, pela embaraçosa
"história" de não ter tocado, durante dois anos, nos contratos swap,
com as consequências financeiras que daí resultaram, invocando o argumento
esfarrapado de "falta de informação", o que se provou que não
correspondia à verdade. Um secretário de Estado, o do Tesouro, escolhido a dedo
pela meia-ministra das Finanças, comprometido até à medula com propostas de
venda de contratos swap ao Estado, que meteu os pés pelas mãos numa memorável
conferência de imprensa, não lhe restando outra saída senão o pedido de
demissão para salvar a face de quem o escolheu e o aceitou. Entretanto, os
briefings do governo, apresentados como a "varinha mágica" para
colmatar um suposto défice de comunicação com os portugueses, foram de tal modo
desastrosos que desapareceram de cena, como se nunca tivessem existido, sem a
menor explicação. No Pontal, o presidente do PSD e primeiro-ministro ensaiou o
perigoso discurso de que as medidas do governo estão a produzir "sinais
positivos", que tudo está a "correr bem", mas existe o
"risco constitucional" - ou seja, a Constituição da República é um
obstáculo às medidas do governo. E nada disto provocou a menor consequência.
O que já parecia
suficientemente grave, afinal era só uma amostra. Ainda em Agosto, o Tribunal
Constitucional, declarou a inconstitucionalidade do regime jurídico da
requalificação de trabalhadores em funções públicas proposto pelo governo. O
senhor primeiro-ministro, no calor de uma récita partidária, mal refeito do
desaire, perguntou: "Alguém se lembrou de perguntar aos mais de 900 mil
desempregados no país de que lhes valeu a Constituição até hoje?" A
pergunta, reveladora da completa ausência de cultura democrática do chefe do
governo, contém em si todo um programa de enfraquecimento do regime
democrático, o que prova que a cultura democrática não cai do céu, nem se
ensina nas "universidades de Verão". E quase não houve sobressaltos,
nem sequer da parte do supremo magistrado da nação. Aqui chegados, qualquer alternativa
a este governo não passa somente pelo pão, mas obrigatoriamente tem de passar,
de novo, pela consolidação da democracia.
A falta de cultura
democrática de governantes e a apatia de governados é uma mistura explosiva
para o regime, sobretudo em tempos de crise. Há algo a apodrecer, lentamente. Mário
Cesariny é que tinha razão: "Limito-me a dizer objectivamente o que penso.
Chegámos ao extremo-limite do perigo.""
Jurista - Escreve à
segunda-feira
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