Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
A
expressão 'linha vermelha' banalizou-se nos últimos tempos, pelo menos desde
que o Presidente Obama a aplicou em relação à guerra química na Síria,
ameaçando então com uma intervenção militar americana. Entretanto, as
aparências foram supostamente salvas com o compromisso internacional que obrigou
o Governo de Damasco a entregar o seu arsenal químico. Mas nem por isso a
guerra na Síria cessou de agravar-se, agora com a interferência crescente dos
extremistas islâmicos, tornando-se virtualmente um beco sem saída para todos os
participantes no conflito e, sobretudo, para o martirizado povo sírio, sujeito
a um massacre interminável.
Pode
aliás dizer-se, com amarga ironia, que, por mais veementes que sejam as
proclamações em contrário, as linhas vermelhas estão condenadas a ser quase
sempre ultrapassadas, como aconteceu em Portugal após a «irrevogável» demissão
de Paulo Portas.
O
actual vice-primeiro-ministro, então apenas ministro dos Estrangeiros,
declarara solenemente que a chamada TSU dos pensionistas representava uma
«linha vermelha» que ele e o CDS nunca aceitariam transpor. Só que ela acabou
mesmo por ser transposta com o agravamento da Contribuição Extraordinária de
Solidariedade (CES), a que o Governo recorreu para compensar o mais recente
chumbo do Tribunal Constitucional.
O
cinismo dos comportamentos triunfou sobre a defesa dos princípios e das linhas
vermelhas, através da promoção de Paulo Portas a número dois do Governo,
enquanto contrapartida da sua «irrevogável» demissão.
Agora,
em nome do fim do 'protectorado' da troika - o tal glorioso 1640 que Portas se
propôs reeditar… -, o que era «linha vermelha» transformou-se em linha
invisível e permeável a todas as hipocrisias do tráfico político.
E
o Congresso do CDS, marcado para este fim-de-semana, terá um sabor de
celebração soviética, em que as desavenças serão varridas para debaixo do
tapete e o grande líder receberá uma consagração quase unânime e sem sombra de
rivais à altura.
Moral
da história: a antiga «linha vermelha» da TSU não foi apenas ultrapassada,
sacrificando uma parte da clientela eleitoral disputada pelo CDS, os
pensionistas, como os efeitos do agravamento da CES serão socialmente mais
penalizadores do que as disposições chumbadas pelo TC.
Com
efeito, a CES não só alarga os escalões atingidos pelo imposto - porque é de um
imposto que se trata -, passando a abranger camadas mais pobres de
pensionistas, como deverá estender-se também àqueles que já a pagavam, segundo
noticiava o Diário Económico da passada terça-feira.
Sabe-se
que o Governo tem andado perdido na definição da famosa 'calibragem' - essa
palavra mágica do dialecto orwelliano adoptado por Passos Coelho e seus
adjuntos - do plano B que supostamente nunca teria existido para substituir as
normas vetadas pelo TC.
A
improvisação e o amadorismo político, que são marcas de origem de um Executivo
que só começa a pensar depois de agir - e normalmente age e pensa às avessas da
lógica e da justiça -, confundem-se com o que é outra dessas marcas
governamentais: o cinismo mais consumado e sempre travestido de mistificações
para consumo do povo ignaro (como foi patente na última comunicação ao país do
primeiro-ministro).
Não
obstante as reservas antigas do seu (entretanto domesticado) parceiro de
coligação, Passos Coelho acaba sempre por escolher o alvo socialmente mais
exposto e vulnerável - logo, com menor capacidade de reivindicação - para
extorquir os recursos necessários ao preenchimento dos buracos orçamentais: os
pensionistas. E fá-lo em nome de uma monstruosidade política e linguística
chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade.
Repare-se
no contrassenso absoluto: em pura lógica, uma contribuição de solidariedade -
extraordinária ou não - deveria ser requerida aos que podem e devem ser
solidários com aqueles que enfrentam maiores dificuldades de sobrevivência.
Ora, a CES onera essencialmente os que menos têm e evita tocar nos que mais
podem.
O
Governo foge como o diabo da cruz de qualquer veleidade de justiça social que,
por exemplo, deveria afectar os mais ricos e poderosos, as redes de empresas e
interesses como as PPP ou as rendas de energia, por exemplo. E justifica-se,
claro, em nome do estímulo ao investimento e da competitividade económica.
Só
que não há defesa consequente do investimento e da competitividade numa
sociedade cada vez mais condenada a viver sob o signo da desigualdade e da
pobreza crescentes.
Existe,
de facto, uma linha vermelha que os parceiros deste Governo não hesitam em transpor,
fazendo tábua rasa do respeito por si mesmos: a da vergonha.
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