terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Portugal: A LINHA VERMELHA DA VERGONHA

 

Vicente Jorge Silva – Sol, opinião

A expressão 'linha vermelha' banalizou-se nos últimos tempos, pelo menos desde que o Presidente Obama a aplicou em relação à guerra química na Síria, ameaçando então com uma intervenção militar americana. Entretanto, as aparências foram supostamente salvas com o compromisso internacional que obrigou o Governo de Damasco a entregar o seu arsenal químico. Mas nem por isso a guerra na Síria cessou de agravar-se, agora com a interferência crescente dos extremistas islâmicos, tornando-se virtualmente um beco sem saída para todos os participantes no conflito e, sobretudo, para o martirizado povo sírio, sujeito a um massacre interminável.

Pode aliás dizer-se, com amarga ironia, que, por mais veementes que sejam as proclamações em contrário, as linhas vermelhas estão condenadas a ser quase sempre ultrapassadas, como aconteceu em Portugal após a «irrevogável» demissão de Paulo Portas.

O actual vice-primeiro-ministro, então apenas ministro dos Estrangeiros, declarara solenemente que a chamada TSU dos pensionistas representava uma «linha vermelha» que ele e o CDS nunca aceitariam transpor. Só que ela acabou mesmo por ser transposta com o agravamento da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), a que o Governo recorreu para compensar o mais recente chumbo do Tribunal Constitucional.

O cinismo dos comportamentos triunfou sobre a defesa dos princípios e das linhas vermelhas, através da promoção de Paulo Portas a número dois do Governo, enquanto contrapartida da sua «irrevogável» demissão.

Agora, em nome do fim do 'protectorado' da troika - o tal glorioso 1640 que Portas se propôs reeditar… -, o que era «linha vermelha» transformou-se em linha invisível e permeável a todas as hipocrisias do tráfico político.

E o Congresso do CDS, marcado para este fim-de-semana, terá um sabor de celebração soviética, em que as desavenças serão varridas para debaixo do tapete e o grande líder receberá uma consagração quase unânime e sem sombra de rivais à altura.

Moral da história: a antiga «linha vermelha» da TSU não foi apenas ultrapassada, sacrificando uma parte da clientela eleitoral disputada pelo CDS, os pensionistas, como os efeitos do agravamento da CES serão socialmente mais penalizadores do que as disposições chumbadas pelo TC.

Com efeito, a CES não só alarga os escalões atingidos pelo imposto - porque é de um imposto que se trata -, passando a abranger camadas mais pobres de pensionistas, como deverá estender-se também àqueles que já a pagavam, segundo noticiava o Diário Económico da passada terça-feira.

Sabe-se que o Governo tem andado perdido na definição da famosa 'calibragem' - essa palavra mágica do dialecto orwelliano adoptado por Passos Coelho e seus adjuntos - do plano B que supostamente nunca teria existido para substituir as normas vetadas pelo TC.

A improvisação e o amadorismo político, que são marcas de origem de um Executivo que só começa a pensar depois de agir - e normalmente age e pensa às avessas da lógica e da justiça -, confundem-se com o que é outra dessas marcas governamentais: o cinismo mais consumado e sempre travestido de mistificações para consumo do povo ignaro (como foi patente na última comunicação ao país do primeiro-ministro).

Não obstante as reservas antigas do seu (entretanto domesticado) parceiro de coligação, Passos Coelho acaba sempre por escolher o alvo socialmente mais exposto e vulnerável - logo, com menor capacidade de reivindicação - para extorquir os recursos necessários ao preenchimento dos buracos orçamentais: os pensionistas. E fá-lo em nome de uma monstruosidade política e linguística chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade.

Repare-se no contrassenso absoluto: em pura lógica, uma contribuição de solidariedade - extraordinária ou não - deveria ser requerida aos que podem e devem ser solidários com aqueles que enfrentam maiores dificuldades de sobrevivência. Ora, a CES onera essencialmente os que menos têm e evita tocar nos que mais podem.

O Governo foge como o diabo da cruz de qualquer veleidade de justiça social que, por exemplo, deveria afectar os mais ricos e poderosos, as redes de empresas e interesses como as PPP ou as rendas de energia, por exemplo. E justifica-se, claro, em nome do estímulo ao investimento e da competitividade económica.

Só que não há defesa consequente do investimento e da competitividade numa sociedade cada vez mais condenada a viver sob o signo da desigualdade e da pobreza crescentes.

Existe, de facto, uma linha vermelha que os parceiros deste Governo não hesitam em transpor, fazendo tábua rasa do respeito por si mesmos: a da vergonha.
 

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