terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A REVOLUÇÃO DA DIGNIDADE

 

António Cluny – jornal i, opinião
 
As políticas que ferem a dignidade da pessoa humana merecem pois a sua crítica clara e intransponível
 
Num estudo recente (2013), intitulado "La Revoluzione della Dignitá", Stefano Rodotà, um prestigiado jurista e político italiano, chama oportunamente a atenção para o conceito de dignidade da pessoa humana.
 
Da constituição italiana de 48 à Constituição alemã de 49 que o conceito de dignidade da pessoa, e não apenas o do sujeito abstracto de direitos, passou a constituir o fundamento constitucional da acção política democrática.
 
A Constituição alemã refere: "A dignidade humana é intangível. É dever de todo o poder estatal respeitá-la e protegê-la."
 
A Constituição portuguesa estabelece, também enfaticamente, o mesmo princípio e os constitucionalistas são unânimes na afirmação de que ele constitui um pressuposto essencial da legitimação da vida política da República.
 
Este conceito de dignidade humana não se reduz, todavia, ao respeito por parte do Estado (ou de outros poderes) pela liberdade ou pela igualdade abstracta de cada pessoa, convertendo-se também no reconhecimento de que, a cada uma delas, devem assistir, para tanto, condições susceptíveis de assegurar uma vida material e culturalmente decente.
 
Mais: a justa medida dessas condições não se resume ao reconhecimento de um mínimo essencial à sua sobrevivência, assumindo verdadeiramente o direito a um conjunto de meios materiais e culturais que permitam estar livremente em sociedade, num plano de dignidade igual à dos demais cidadãos.
 
As políticas que estas constituições consentem são portanto as que podem dar expressão a uma transformação da realidade que tenha como objectivo a qualificação da sua condição de pessoas: a sua dignidade humana.
 
Ou, como explicita o insigne jurista italiano, "o princípio da liberdade conjuga-se com o da igualdade para evitar discriminações ou estigmatizações sociais".
 
Toda a actividade política tem assim, obrigatoriamente, de emanar do cumprimento desse desígnio, devendo as leis que lhe dão corpo ser apreciadas em função do seu maior ou menor afastamento desse fundamento.
 
Rodotà, ao caracterizar o conceito de dignidade, refere que, nesta perspectiva, "o sujeito abstracto encarna a pessoa concreta", tornando-a irredutível à condição de objecto ou variante do mercado.
 
Rodotà é um homem que se expressa politicamente na área da esquerda.
 
Num palco outro e mais vasto, ouvimos entretanto o Papa Francisco manifestar sobre realidade actual: "A alegria de viver desvanece-se frequentemente; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna--se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade." E acrescenta: "O ser humano é considerado, em si mesmo, um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora [...] Já não se trata simplesmente do fenómeno da exploração e da opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se na própria raiz a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está dentro dela, mas fora. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras ("Evangelii Gaudium").
 
As políticas que ferem a dignidade da pessoa humana merecem pois a sua crítica clara e intransigente.
 
O Papa e Rodotà terão porventura chegado às mesmas conclusões por vias diferentes. A realidade que abordam é a mesma.
 
São homens de boa vontade e podem por isso entender-se e fazer-nos entender na defesa conjunta da dignidade da pessoa humana: de toda e qualquer pessoa. De toda a humanidade.
 
Jurista e presidente da MEDEL - Escreve à terça-feira
 

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