Como grandes
empresas fraudaram licitações, elevando preços, redefinindo projetos e
bloqueando tecnologia nacional. Por que governos paulistas foram cúmplices
Téia Magalhães, no Retrato do Brasil –
em Outras Palavras
Os objetivos dos
governos e dos cartéis são, em princípio, opostos: o poder público se esforça
para comprar sempre pelo menor preço bens e serviços com determinadas
especificações de qualidade e o cartel, ao contrário, quer vendê-los por preços
superiores aos que cada empresa individualmente proporia se houvesse
concorrência real. Para combater a ação dos cartéis, os governos criam órgãos
de defesa da concorrência e criminalizam os conluios entre empresas
independentes que se articulam com o objetivo de reduzir a concorrência em
determinado setor. A cartelização é um fenômeno das economias capitalistas
desde o final do século XIX e seu combate, apesar dos esforços dos Estados, é
frequentemente frustrante.
Por aqui, o Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência, formado pela Secretaria de Direito
Econômico e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligados ao
Ministério da Justiça, e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, vinculada
ao Ministério da Fazenda, é o encarregado desse combate. Em maio do ano
passado, o Cade ganhou destaque no noticiário graças ao acordo de leniência
firmado com a Siemens AG, alemã, a Siemens Ltda, sua subsidiária brasileira, e
seis ex-diretores da empresa. Todos admitiram ter participado de um cartel e
apresentaram evidências de acordos feitos entre as empresas da área de trens
urbanos e metrôs para burlar a concorrência.
Acordo de leniência
é um instrumento legal, equivalente à delação premiada, instituído na área
criminal, por meio do qual o delator de um crime do qual participou tem sua
pena atenuada por ter ajudado nas investigações. O acordo celebrado com o Cade
é acompanhado de uma descrição dos fatos, modo de operação do cartel e seus
participantes e de apensos, os quais detalham seis licitações: implantação da
linha 5 do Metrô de São Paulo; manutenção de três séries de trens da Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM); manutenção e assistência técnica ao
Metrô do Distrito Federal (DF); ampliação da linha 2 do Metrô de São Paulo; implantação
do Projeto Boa Viagem, de modernização de trens da CPTM; e aquisição de 320
carros para trens da CPTM. Os fatos narrados teriam ocorrido entre 1998 e 2008,
envolvendo os governos de Mario Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, em São
Paulo, e de Joaquim Roriz, Maria Abadia e José Roberto Arruda, no DF.
Os indícios de
formação do cartel são encontrados em negociações realizadas entre dezesseis
companhias, nacionais e internacionais, para combinar resultados de licitações
conduzidas por empresas públicas para fornecimento de trens ou serviços. Os
contratos são divididos entre as empresas fornecedoras por meio da formação de
consórcios e subcontratações e de ofertas de preços mais altos, chamados “de
cobertura”, de maneira a elevar o valor do conjunto das ofertas além do que
seria obtido se houvesse verdadeira concorrência entre os participantes. Nesses
casos, as “perdedoras” acabam sendo recompensadas mais adiante com vitórias em
outras licitações, quando empresas vitoriosas numa situação invertem suas
posições e oferecem preços “de cobertura”.
Nas seis licitações
mencionadas no acordo de leniência há conluios entre as empresas para elevar os
preços de fornecimento de bens e serviços. Foi o que aconteceu, por exemplo, na
implantação da linha 5 do Metrô paulistano, cuja licitação foi conduzida na
época (entre 1999 e 2000) pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
(CPTM): havia sete qualificados na fase inicial, a maioria dos quais agrupou-se
no consórcio Sistrem, vencedor da licitação, que subcontratou duas das três
empresas do consórcio derrotado.
Há diversas pistas
das negociações entre as empresas numa espécie de diário com anotações sobre os
acertos, entregue pela Siemens ao Cade, no qual há relatos da hipótese, depois
abandonada, da entrega por dois consórcios formados na fase da pré-qualificação
de “propostas perdedoras”. Essa licitação foi ganha por cerca de US$ 1,785
milhão por carro, conforme documento encontrado em computador da empresa alemã.
“Deve-se lembrar que o preço foi resultado de diversas rodadas de coordenação e
negociações. O preço dificilmente seria o mesmo em uma competição aberta”, diz
o texto, de 2003. E numa apresentação, encontrada entre os documentos, há o
comentário: “O projeto Linha 5 é o último de ganho certo. O fornecimento dos
carros é organizado em um consórcio ‘político’, então o preço é muito alto”.
Outro exemplo está
no e-mail de funcionário da Siemens enviado a dois funcionários da japonesa
Mitsui, com simulações feitas sobre duas diferentes possibilidades de entrar na
disputa da licitação da reforma de três séries de trens da CPTM. Uma das
hipóteses prevê acordo e “preço (quase) cheio”, com desconto baixo sobre o
preço estimado pelo edital. A outra não prevê acordo, “beirando o preço mínimo
permitido”. A diferença entre as duas – uma com acerto entre as empresas e a
outra, com concorrência entre elas – seria de 30%. O sobrepreço pago pelas
empresas públicas devido à prática do cartel tem sido estimado em mais de 400
milhões de reais.
Outra prática comum
revelada pelos documentos é a divisão dos contratos entre os integrantes do
cartel. Como teria ocorrido em relação à manutenção dos trens da CPTM Séries
2000, 3000 e 2100: as empresas acertaram quais seriam as vencedoras em cada
série e quais seriam as subcontratadas. Como o ganhador da primeira foi o
Consórcio Cobraman (composto pela francesa Alstom, pela canadense Bombardier e
pela espanhola CAF), a Siemens deveria vencer a Série 3000 e Alstom, CAF,
Bombardier, a espanhola Temoinsa e Mitsui ficariam com a Série 2100. Quando o
Cobraman pretendeu dividir a Série 3000 com a Siemens, a empresa alemã informou
às demais companhias que apresentaria proposta competitiva para a Série 2100, o
que provocou o recuo do consórcio. A Siemens acabou vencedora isolada da Série
3000, cuja licitação recebeu propostas “de cobertura” das demais empresas. A
Série 2100 foi contratada com o consórcio Consmac (Alstom e CAF), que
subcontratou as outras três – Bombardier, Temoinsa e Mitsui – como
fornecedoras.
Foi objeto de
repartição ainda maior o Projeto Boa Viagem, dividido em quatro licitações,
duas das quais subdivididas em lotes, o que permitiu que todas as empresas que
participaram das negociações fossem contempladas com um lote ou subcontratadas.
Alstom, Bombardier, Siemens, Temoinsa, e as brasileiras Iesa MGE T’Trans,
Tejofran e MPE, chamadas nos e-mails de “grupo”, iniciaram as negociações antes
mesmo do início da etapa de pré-qualificação. Mensagens eletrônicas relatam
providências para manter afastadas as empresas que não pertencem ao “grupo”.
Esse caso evidencia
como a própria administração pública favorece a cartelização, ao contratar
serviços e obras em lotes. A contratação de grandes obras em uma única
licitação foi muito criticada no passado pelo fato de facilitar o
direcionamento dos editais para uma ou pouquíssimas empresas com capacidades
técnica, operacional e financeira de assumi-las. Passou-se a adotar, então, a
divisão em lotes, para facilitar a participação de empresas menores e, dessa
forma, aumentar a concorrência. Mas parece que o tiro saiu pela culatra e os
lotes acabaram facilitando a acomodação dos cartéis, ao menos nos casos
descritos pela documentação entregue pela Siemens.
A administração
pública também pode influenciar as licitações para favorecer determinada
empresa ou grupo de empresas por meio das especificações técnicas dos editais.
É o que parecem indicar e-mails internos da Siemens sobre a futura licitação de
extensão de uma linha da CPTM; um dos dirigentes da empresa afirma: “A CPTM
gostaria muito se a Siemens participasse com seus veículos e/ou tecnologia de equipamentos.
(…) Fomos convidados a manter conversas mais detalhadas com os especialistas da
CPTM a fim de ‘melhorar’ [sic] as especificações técnicas com nossa
tecnologia”. Ou ainda: “[Estamos] atuando junto à CPTM e ao Metrô de São Paulo
para que tenha origem neste setor uma participação importante para a Siemens
(por exemplo, equipamentos completos de tração)”.
As denúncias da
Siemens revelam também que entre as empresas formadoras de um cartel há
interesses divergentes. A última das licitações mencionadas pela companhia no
acordo com o Cade, pela ordem cronológica, é para o fornecimento de três carros
para a CPTM entre 2007 e 2009. Segundo relatos da Siemens, haveria uma segunda
licitação em seguida, para fornecimento de 64 carros, levando a uma combinação
entre Siemens e Alstom. A empresa francesa ficaria com o contrato inicial,
associada à sul-coreana Hyundai-Rotem, e subcontrataria a companhia alemã,
enquanto esta ficaria com o fornecimento dos 64 carros seguintes, associada à
Mitsui, subcontratando a Alstom. As negociações, entretanto, foram
comprometidas pela decisão da CAF de apresentar oferta com preços mais baixos.
A Siemens tentou
negociar com a companhia espanhola no final de março de 2008, mas a CAF queria
a entrega de trens completos, enquanto a empresa alemã queria fornecer apenas
componentes (tração e chassis). Em contrapartida, a Hyundai-Rotem, que estava
associada à Alstom, começou a negociar com a Siemens, para, juntas, tentarem
desqualificar a CAF, que segundo a sul-coreana, não teria cumprido exigências
do Banco Mundial, que financiou o projeto. A Siemens foi à Justiça e perdeu. E
a CAF acabou contratada em 2009. E a segunda etapa, com os 64 carros, também
foi ganha pela CAF.
Esses arranjos
teriam sido facilitados pela fragilidade dos processos de licitação. Pelo menos
é o que conclui o Grupo Externo de Acompanhamento (GEA), criado em agosto pelo
governo paulista, composto por representantes de doze entidades da sociedade
civil para supervisionar investigações sobre as denúncias que envolviam duas
das empresas estatais do estado. Em dezembro, o GEA divulgou uma análise dos
processos licitatórios adotados pela CPTM e pelo Metrô, a partir de informações
solicitadas às duas companhias. De acordo com o grupo, o procedimento usado
pela CPTM até 2008 incluía a aplicação de correção monetária sobre preços de
aquisição atingidos em licitações anteriores. A partir de 2008, por
recomendação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), a empresa passou a fazer
cotação de preços – mas por meio de consultas às companhias que participam
desse mercado no Brasil, sem buscar informações no exterior, ficando dependente
dos próprios interessados na licitação. O mesmo procedimento de consulta de
preços foi informado pelo Metrô. O GEA concluiu, então, que essas práticas
tornaram as duas empresas estatais paulistas vulneráveis.
A investigação
sobre a existência de um cartel no setor metroferroviário feita pelo Cade não
trata de corrupção, uma vez que não é esse o papel do órgão. Mas informações
obtidas por outras denúncias estão sendo investigadas pela Polícia Federal (PF)
em São Paulo, e se embaralharam com as informações fornecidas pela Siemens ao
Cade. As fragilidades da administração pública diante do cartel
metroferroviário e a persistente prática de fazer vista grossa dos sucessivos
governos frente às evidências de que as empresas dividem os contratos entre si
formam um caldo de cultura propício ao desenvolvimento da corrupção. Algo que,
pelo menos as duas principais empresas que atuam no Brasil – Siemens e Alstom –
admitiram praticar no exterior.
De acordo com
informações publicadas pelo diário O Estado de S. Paulo no final de novembro,
documento atribuído a Everton Rheinheimer – ex-diretor da Siemens e um dos que
firmaram o acordo de leniência –, encaminhado à PF, menciona os nomes de
secretários do governo Alckmin, de dirigentes do PSDB e do DEM, de um senador
tucano e de um deputado federal do PPS como envolvidos com a Procint, empresa
de consultoria suspeita de intermediar propinas pagas pelo cartel. Rheinheimer
afirma dispor de documentos “que provam a existência de um forte esquema de
corrupção no estado de São Paulo durante os governos Covas, Alckmin e Serra, e
que tinha como objetivo principal o abastecimento do ‘Caixa 2′ do PSDB e do
DEM”. A PF, que investiga o caso, encaminhou o inquérito à Justiça Federal, que
o enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) ao se deparar com o suposto
envolvimento de parlamentares, que têm foro privilegiado.
A atração pelas
denúncias de corrupção trouxe para a cena outra investigação da PF sobre uma
empresa que faria parte do cartel – a Alstom. Os pagamentos não se referem ao
cartel dos trens, mas a negociações realizadas sob o abrigo do projeto Gisel
II–Grupo Industrial para o Sistema Eletropaulo, realizado por meio de acordo de
cooperação técnica entre Brasil e França, que teria sido assinado em 1983, mas
originalmente sem o “II”. Tal tipo de acordo era comum entre o final dos anos
1970 e início dos anos 1980 e destinava-se a “rolar” a dívida externa, por meio
de empréstimos externos destinados a centenas de projetos de infraestrutura.
Parte dos recursos era destinada à fabricação de equipamentos no exterior e o
restante às obras civis realizadas aqui, as quais não eram realizadas porque os
recursos destinados a elas pagavam os juros e as amortizações de projetos
anteriores. Foram centenas, que ficaram em grande parte inacabados por anos.
Em meados de 1994,
discutiu-se o aditivo 10 ao acordo com a França, o qual, tudo indica, era uma
segunda etapa destinada ao fornecimento de subestações elétricas para dar
suporte à ampliação de linhas do Metrô paulistano. Essa pode ter sido a porta
de entrada da Alstom no setor metroviário.
As denúncias sobre
pagamento de propinas pela Alstom chegaram ao Brasil em 2008, por meio de
informações enviadas pelo Ministério Público da Suíça, em consequência de
investigações realizadas lá em contas que receberam depósitos da Alstom, o que
levou a contas cujos titulares eram brasileiros. As investigações prosseguiram
e a PF indiciou onze pessoas, entre elas um ex-secretário de Energia no governo
Covas, ex-diretores da EPTE (empresa resultante do desmembramento da
Eletropaulo para privatização, que atuava na distribuição de energia, com quem
foi firmado o aditivo 10 do Gisel), diretores franceses da Alstom e lobistas
brasileiros. Aparentemente, meses depois, a PF começou a investigar outra
denúncia de propinas pagas pela Alstom e esbarrou em consultorias, que teriam
feito pagamentos vultosos a outras empresas do ramo, as quais pertenceriam a
dois ex-diretores e a um ex-presidente da CPTM. A Justiça Federal em São Paulo
bloqueou diversas contas, num total de 57 milhões de reais. Em sua sentença, o
juiz se refere ao fato de duas empresas de consultoria acusadas de fazerem a
intermediação no pagamento das propinas terem recebido do consórcio Sistrem
mais de 18 milhões reais.
Esses escândalos de
corrupção envolvendo altos funcionários de governos, como em outros casos,
desviam a atenção de questões de fundo reveladas pelas denúncias. Uma
investigação sobre a dívida externa brasileira, por exemplo, que parece estar
na origem do projeto Gisel, nunca chegou a ser realizada em profundidade.
Tampouco se discute a dependência tecnológica que torna os governos reféns das
empresas do cartel metroferroviário. Os acordos de cooperação técnica, como o
Gisel, previam a transferência de tecnologia. Para quem? Para a Eletropaulo,
primeiro, e depois para a EPTE, que resultou do desmembramento da empresa para
sua privatização – vale lembrar que, segundo o diário Folha de S. Paulo, em
2008 ela era dirigida por um ex-executivo da Alstom.
Por que um país
como o Brasil, uma das maiores economias do mundo, com graves problemas de
mobilidade urbana, não tem uma estrutura própria para produção de seu sistema
de trens urbanos e metrôs? Foram necessárias quatro décadas para construir 73
quilômetros de linhas em São Paulo, a cidade brasileira disparadamente mais bem
servida nesse sentido. A China, que começou mais ou menos na mesma época, deve
alcançar quase 3 mil quilômetros no ano que vem, e tem duas das cinco maiores
empresas que atuam no setor – as quais, aliás, fornecem trens para o Metrô do
Rio de Janeiro. Já o Brasil resume sua atuação na área a “ajeitar” os editais
para atender aos interesses das empresas. Por isso, mesmo diante de evidências
escancaradas de que há acordo entre as empresas, com o objetivo óbvio de
superfaturar os contratos, os governos não cancelam as licitações. Vão fazer o
que, diante das alternativas quase nulas?
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