segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Portugal: MIRÓ É O NOME DO MEU GATO

 

Tomás Vasques – Jornal i, opinião
 
A lógica da venda das obras de Miró é a mesma da venda da EDP e dos CTT. É a lógica segundo a qual o Estado tem de se desfazer do seu património para pagar as dívidas
 
O governo, sem querer, apenas como resultado da sua natural propensão para tropeçar nos próprios pés, no afogadilho de vender tudo o que o Estado ainda tem de seu (o que significa, na verdade, de nosso), cometeu a proeza de fazer de Juan Miró o pintor estrangeiro mais conhecido em Portugal. Hoje, poucos são aqueles que, de Norte a Sul do país, não conhecem, pelo menos de nome, Miró. Até ao balcão do café da minha aldeia, no Alto Alentejo, fui surpreendido por uma acalorada discussão sobre a qualidade da obra do pintor catalão e sobre as vantagens e desvantagens da decisão de vender os seus 85 trabalhos propriedade do Estado português. Na Catalunha devem estar roídos de inveja, como nós estaríamos se os catalães andassem, por todas as aldeias, vilas e cidades, a falar sobre a obra e a vida de Amadeo de Sousa Cardoso ou Vieira da Silva.
 
Miró mereceu a abertura de vários telejornais, extensos editoriais e artigos de opinião, numa involuntária acção de divulgação cultural sem precedentes, apesar de quase todos lhe denegrirem os méritos para justificar a frustrada venda, o que revela a fragilidade da fundamentação. Como a raposa, dizem: "Estão verdes; não prestam". Uns, informaram-nos, para que o não confundíssemos com um defesa do Bilbau, que se tratava de um pintor surrealista (que se encontrava, de vez em quando, em Paris, com André Breton), mas que não meteu prego, nem estopa na obra de Alexandre O'Neill ou em Marcelino Vespeira, dois dos nossos ilustres surrealistas. Outros, mais afoitos, revelando a alma de críticos de arte, como quem desafia as leis da gravidade, reduziram-no a um pintor menor no contexto histórico, apenas para concluírem: vendam isso imediatamente. Outros, ainda, usando os mais subtis argumentos de vendedores, perguntaram: pensam que Miró vai atrair milhões de turistas a Lisboa? Milhões? A pergunta é feita, propositadamente, para ter uma resposta negativa, já que, por exemplo, o Museu do Prado, em Madrid, o sexto museu pago mais visitado da Europa, com um acervo inigualável, em 2012, teve dois milhões e tal de visitantes. Os mais ligeiros, sem se darem conta do caricato, escreveram mais de três mil caracteres para nos explicarem que o assunto Miró, por se tratar de uma gritaria histérica, não merecia uma linha. Estas tonterias de circunstância não aquecem, nem arrefecem os mercados da arte, onde o último quadro de Miró, leiloado pela Christie's, rendeu mais de vinte milhões de euros. Nem o autor da obra monumental O Camponês Catalão na Revolução, exposto com a Guernica, de Picasso, em 1937, no Pavilhão da República Espanhola, na Exposição Internacional de Paris, se incomodará com os seus críticos de ocasião. Uma coisa é certa: os 85 trabalhos à venda, sendo grande parte pequenos desenhos, propriedade do Estado português, valem mais do que o montante pelo qual o governo vendeu o famigerado BPN (depois de lá ter injectado 800 milhões de euros) - 40 milhões de euros.
 
Atrás da venda das obras de Miró, essas "coisas" menores que não nos interessam, porque o que nós precisamos é de dinheiro, e não nos podemos dar ao luxo de ter anéis quando passamos fome, veio o regabofe do costume. Autorizações ilegais de saída dos quadros do país, transporte mistério, decisões judiciais controversas e, finalmente, a leiloeira, arrastada pelo governo português para a confusão e a incerteza, a suspender a venda para defender a sua imagem e os seus créditos. Resta a certeza de que Miró continuará vivo na conversa dos portugueses: o governo promete insistir na venda das obras. O Ministério Público ameaça com nova providência cautelar. A comunicação social do mundo inteiro continua à espera dos próximos episódios, como se fossemos protagonistas de uma telenovela mexicana.
 
A lógica da venda das obras de Miró é a mesma da venda de parte da EDP, dos CTT, dos Seguros, da TAP ou de terrenos no Algarve. É a lógica segundo a qual o Estado tem de se desfazer de todo o seu património para pagar as dívidas. Só que, neste caso, da venda de obras de arte, o Estado contou com uma rede de defensores que não esperava. Aparentemente, só pelo facto de serem obras de arte.
 
Jurista, escreve à segunda-feira
 

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