José Goulão –
Jornal de Angola, opinião
Como todas as
actividades sérias e rigorosas, a História tem o seu lado brincalhão, aquele
que lhe permite apanhar nas suas contradições, expor na sua irresponsabilidade
e exibir na sua ignorância os que por terem poder no mundo se julgam com
direito a um inerente lugar de culto mesmo não conseguindo ver além do umbigo
dos verdadeiros amos.
O referendo na
Crimeia teria reaberto farândolas carnavalescas em plena Quaresma se isso não
fosse insultuoso, não tanto por respeito aos sombrios véus que cobrem esta
quarentena mas porque, nunca é excessivo dizê-lo, se jogam milhões de vidas
humanas nas poses bacocas, frases ocas e reuniões redundantes para decidir o
que já está decidido, redizer o que foi dito e chamar os fotógrafos a captar
apertos de mãos há muito apertadas. Uma tenebrosa e ameaçadora fantochada – na
essência verdadeira do termo. Por isso é útil que às vezes a memória da
História brinque com estes fantoches que julgam conquistá-la e nela nunca
passam do que já são hoje. Ou pior, a ver vamos.
Aqueles que do alto da colina do Capitólio, mas em Washington, bradam contra a
invasão militar da Crimeia sob forma de consulta popular são os mesmos que
ainda hoje estão no Iraque depois de terem mentido ao mundo inteiro sobre armas
que não existiam , os que se mantêm no Afeganistão para supostamente capturarem
ou matarem (mataram-no e logo a seguir os que o mataram também pereceram por
“acidente”) um fabricante de bandos terroristas que eles próprios criaram e
financiaram.
Os mesmos que sentenciam e executam, sem culpa formada, sem julgamento e em
qualquer lugar do mundo, compatriotas ou não compatriotas cujos conhecimentos
têm de ficar guardados com eles para todo o sempre porque o silêncio é mais
eficaz que o mais barulhento dos mísseis. E que dizer dos que das escadarias históricas
de Paris, Berlim, Londres ou dos tapetes de Bruxelas clamam contra esse
neo-sovietismo putinista, afinal muito mais afim do romanovismo imperial?
– Mas isto não convém dizer para não ferir os ouvidos delicados desta
Europa tão monárquica...Sim, eles estão revoltados com a actuação da Rússia na
Crimeia. Sim, eles estão rendidos às virtudes do governo democrático e
fascistóide de Kiev, que ninguém elegeu ao contrário do que até com Hitler
aconteceu. Sim, eles proclamam os votos dos cidadãos da Crimeia “ilegais” e
“ilegítimos”. Pelo que estalam sanções, troam ameaças, navios da NATO avançam,
estreito a estreito, para o Mar Negro.
Sim, diz a História que eles são todos co-responsáveis, recorrendo até aos
bandos terroristas que foram criando pelo caminho, pelos bombardeamentos
assassinos de Belgrado, em 1999, de que o Tribunal de Haia ainda não tomou
conhecimento. Sim, a História conta que eles montaram um referendo para separar
o Kosovo da Sérvia, anexando-o à Albânia sob forma mista de província deste
país e protectorado da NATO, relegando para um gueto a desprotegida minoria
sérvia. Sim, eles abafam na sua comunicação social corporativa os protestos que
se multiplicam na Bósnia-Herzegovina, que não são contra a Rússia, nem qualquer
temida vizinhança, tão só contra o regime da NATO e da União Europeia, usando a
abusando das políticas da troika sem precisar de troika para nada, e que agora
seguem direitinhas para a Ucrânia. Sim, a História recorda-se de que a
democrática França continua a ocupar a ilha de Mayotte, nas Comores,
organizando referendos que violam posições do Comité de Descolonização da ONU e
da União Africana para manter no Índico, à beira de Madagáscar, o 101º
Departamento da República Francesa. Sim, de muitas destas coisas já poucos se lembram,
a maioria talvez ignore. Porém, a História, essa manhosa, tem memória.
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