quinta-feira, 20 de março de 2014

A HISTÓRIA BRINCALHONA



José Goulão – Jornal de Angola, opinião

Como todas as actividades sérias e rigorosas, a História tem o seu lado brincalhão, aquele que lhe permite apanhar nas suas contradições, expor na sua irresponsabilidade e exibir na sua ignorância os que por terem poder no mundo se julgam com direito a um inerente lugar de culto mesmo não conseguindo ver além do umbigo dos verdadeiros amos.

O referendo na Crimeia teria reaberto farândolas carnavalescas em plena Quaresma se isso não fosse insultuoso, não tanto por respeito aos sombrios véus que cobrem esta quarentena mas porque, nunca é excessivo dizê-lo, se jogam milhões de vidas humanas nas poses bacocas, frases ocas e reuniões redundantes para decidir o que já está decidido, redizer o que foi dito e chamar os fotógrafos a captar apertos de mãos há muito apertadas. Uma tenebrosa e ameaçadora fantochada – na essência verdadeira do termo. Por isso é útil que às vezes a memória da História brinque com estes fantoches que julgam conquistá-la e nela nunca passam do que já são hoje. Ou pior, a ver vamos.

Aqueles que do alto da colina do Capitólio, mas em Washington, bradam contra a invasão militar da Crimeia sob forma de consulta popular são os mesmos que ainda hoje estão no Iraque depois de terem mentido ao mundo inteiro sobre armas que não existiam , os que se mantêm no Afeganistão para supostamente capturarem ou matarem (mataram-no e logo a seguir os que o mataram também pereceram por “acidente”) um fabricante de bandos terroristas que eles próprios criaram e financiaram.

Os mesmos que sentenciam e executam, sem culpa formada, sem julgamento e em qualquer lugar do mundo, compatriotas ou não compatriotas cujos conhecimentos têm de ficar guardados com eles para todo o sempre porque o silêncio é mais eficaz que o mais barulhento dos mísseis. E que dizer dos que das escadarias históricas de Paris, Berlim, Londres ou dos tapetes de Bruxelas clamam contra esse neo-sovietismo putinista, afinal muito mais afim do romanovismo imperial? –  Mas isto não convém dizer para não ferir os ouvidos delicados desta Europa tão monárquica...Sim, eles estão revoltados com a actuação da Rússia na Crimeia. Sim, eles estão rendidos às virtudes do governo democrático e fascistóide de Kiev, que ninguém elegeu ao contrário do que até com Hitler aconteceu. Sim, eles proclamam os votos dos cidadãos da Crimeia “ilegais” e “ilegítimos”. Pelo que estalam sanções, troam ameaças, navios da NATO avançam, estreito a estreito, para o Mar Negro.

Sim, diz a História que eles são todos co-responsáveis, recorrendo até aos bandos terroristas que foram criando pelo caminho, pelos bombardeamentos assassinos de Belgrado, em 1999, de que o Tribunal de Haia ainda não tomou conhecimento. Sim, a História conta que eles montaram um referendo para separar o Kosovo da Sérvia, anexando-o à Albânia sob forma mista de província deste país e protectorado da NATO, relegando para um gueto a desprotegida minoria sérvia. Sim, eles abafam na sua comunicação social corporativa os protestos que se multiplicam na Bósnia-Herzegovina, que não são contra a Rússia, nem qualquer temida vizinhança, tão só contra o regime da NATO e da União Europeia, usando a abusando das políticas da troika sem precisar de troika para nada, e que agora seguem direitinhas para a Ucrânia. Sim, a História recorda-se de que a democrática França continua a ocupar a ilha de Mayotte, nas Comores, organizando referendos que violam posições do Comité de Descolonização da ONU e da União Africana para manter no Índico, à beira de Madagáscar, o 101º Departamento da República Francesa. Sim, de muitas destas coisas já poucos se lembram, a maioria talvez ignore. Porém, a História, essa manhosa, tem memória.

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