ISABEL CASTRO – Hoje Macau, em Contramão, opinião
Às
tantas é do tempo a passar. Os anos vão e com ele vão as memórias, algumas
memórias, os cheiros, alguns cheiros, as pessoas, algumas pessoas. Os hábitos,
quase todos os hábitos. Nunca fui de datas, mas as datas dão que pensar no que
perdemos e no que, entretanto, ganhámos. É mais ou menos como o Natal, que pode
ser todos os dias mas que acontece ser a 25 do último mês do ano. O 10 de Junho
é mais ou menos a mesma coisa – podia ser todos os dias, mas só a 10 de Junho
se recita Camões, se recorda Camões, se celebra Portugal, se elogiam os
portugueses na diáspora.
Os
portugueses na diáspora. O número oficial mudou dos cinco milhões para os cinco
milhões e meio e o número não me agrada, como em geral não me agrada qualquer
outro número, porque os números são substitutos manhosos das pessoas. O número
da diáspora não me agrada por saber do que ela agora é feita, da crise, a
consequência da crise, das reestruturações, das sinergias, das reformas, dos
activos. E dos passivos.
O
H. não faz parte da diáspora. Perdeu o emprego no dia a seguir ao 10 de Junho.
Foi um entre muitos. Talvez venha a fazer parte dos activos da diáspora. A L.
ficou sem trabalho há mais tempo e, ela assim, já engrossa o número das
comunidades. Trocou a serra dela pelo Sul, mais quente, mais agreste, menos
casa. O R. partiu mais ou menos na mesma altura. Também foi para Sul.
Por
aqui, a Oriente, a diáspora cresceu. E todos sabemos que não cresceu porque
calhou, não cresceu porque houve uma colectiva vontade de descobrir o mundo e
viver novas aventuras. Aqui também há um H. que ficou sem emprego, uma L. que
deixou de ter trabalho. Não são jovens, nem velhos. Estão mais ou menos a meio
da vida – como se a vida tivesse um dia certo para ir embora. Chegam na idade
de ter filhos, uns já com filhos às costas, com promessas de emprego e o desejo
simples de chegar sossegadamente ao final do mês. Mas sabemos todos que as
coisas nem sempre são assim. Por aqui também há quem faça demasiadas contas à
vida. Também é esta a vida de quem partiu e passou a fazer parte do activo
nacional no estrangeiro.
E
depois temos os discursos. Os discursos que se ouviram um dia antes de o H. ter
sido despedido. Os discursos no Portugal onde ele ainda está, mas onde já não
está a L., nem o R., nem eu – que saí da zona de conforto quando ainda havia
conforto, numa altura em que se saía só porque apetecia. Os discursos que
chegaram ao Sul, que chegaram aqui. Os discursos que se ouviram aqui. Os
discursos da política levezinha, pequenininha, que ninguém ouve porque o calor
é muito. Os discursos dos activos, de como o Estado conta connosco, os
discursos das contas de merceeiro, da economia de mão-de-obra empobrecida. Os
discursos para as pessoas que parece que deixaram de ser pessoas, que passaram
a ser interesses estratégicos nacionais, embaixadores por conta própria e sem
subsídio estatal de uma ideia qualquer que, de repente, se quer vender ao
mundo. Às tantas é do tempo a passar, mas tenho cada vez menos paciência.
Estou
à espera que um dia mandem, a um 10 de Junho, um emissário de Lisboa que tenha
lido a lírica de Camões. Que não esteja em perpétua campanha eleitoral. Que
fale como se eu fosse portuguesa. Que não me diga que estou bem, porque não
preciso que me digam que estou bem, muito bem obrigada, que eu é que sei como
estou. Eu e os outros.
Estou
à espera que um dia mandem cá alguém que venha cá, que venha cá mesmo, e que me
diga – a mim, portuguesa, nascida em Portugal, filha de portugueses e mãe de
uma portuguesa – que o meu país continua a existir. Para mim, para o H., para a
L., para o R. e para todos os outros que, de malas feitas ou com elas já
desfeitas, deixaram de saber se algum dia voltam a casa.
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