Inocência
Mata – Afropress, colunistas
Que
existe uma estreita relação entre futebol e política, já ninguém contesta.
Basta ver a forma como certos regimes se apropriam do futebol, e o manipulam,
em diferentes momentos políticos da história. Um exemplo bem conhecido é o do
uso que o Estado Novo fez do futebol e de seus símbolos (Eusébio, por
exemplo) em Portugal; ou como o futebol foi durante muito tempo o lugar onde
os defensores de uma imagem asséptica da nação brasileira, sem
dissensos e sem contradição, apresentando um Pelé como símbolo da democracia
racial (ideia que o próprio internalizou e defende até hoje!), ou, hoje, o uso
que no Brasil tem vindo a ser feito desse desporto, por parte do regime e de
seus opositores, sobretudo estes que sempre haviam visto no futebol um
instrumento de alienação popular pelo poder que detinham e representavam e que
hoje o instrumentalizam para contestar o poder que perceberam que já não
controlam na totalidade. A adesão sentimental que o futebol desperta, que não
raro resulta em idolatria (decorrente da alienação social), pode,
portanto, ser manipulada, enquanto cultura de massas, para servir o poder dessa
elite que apregoa a “cultura” color-blind (quando lhes convém,
claro), tanto através do fenómeno da alienação quanto através do sentimento de
“paixão nacional”.
Que
existe uma profunda relação entre futebol e identidade, também ninguém
contesta. Podemos até pensar que a nossa opção de torcida é racional, sobretudo
em jogos em que competem selecções nacionais, mas optarmos torcer por uma
equipa em vez da equipa adversária é uma opção grandemente identitária e não
tão “racional” ditada por razões meramente técnicas. E isso acontece mesmo em
jogos nacionais, isto é, quando joga o Progresso do Sambizanga e o Primeiro de
Agosto, em Angola, ou o Sporting e o Futebol Clube do Porto, em Portugal.
Pode
é parecer menos natural, porque menos visível, a relação entre futebol e
ideologia, embora essa relação já esteja muito estudada por historiadores da
cultura, sociólogos e politólogos. No seu livro Sociologia do futebol:
dimensões históricas e sociológicas do esporte das multidões[ii], Richard Giulianotti mostra a relação
entre futebol e ideologia, particularmente, no nacional-socialismo, no Estado
Novo português, na ditadura militar brasileira, e antes, a ideologia do
imperialismo britânico do século XIX. Exactamente por se tratar de um fenómeno
cultural de massas, o futebol não é isento de ideologia, aqui entendida como
“um conjunto estruturado de imagens, de representações, de mitos, determinando
certos tipos de comportamentos, de práticas, de hábitos e funcionando (...)
como um verdadeiro inconsciente”[iii].
Vem
tudo isso a propósito do profundo, desvastador mal-estar sentido pelos, eu
ousaria dizer, 99% dos meus ouvintes neste momento [no dia 09 de Julho] com a
estrondosa derrota do Brasil neste Mundial de 2014. Eu estava estado de
choque e desliguei a televisão ao quarto golo sem resposta; sofri, deprimi-me,
amaldiçoei o mau comportamento do Thiago Silva, a lesão do Neymar, a solidão do
Júlio César, as opções do Scolari. E porquê tudo isto? Tive de fazer um esforço
para encarar aquilo como realmente é: um jogo e nada mais, que não iria mudar a
minha vida! Ora, alguém insinuou-me que tal se deveu, sobretudo tratando-se de
portugueses, ao facto de se ter estado à espera que o Brasil “vingasse” outra
estrondosa derrota, a de Portugal. Eu não creio que esta relação (desolação è
vingança) seja tão linear: mesmo que Portugal tivesse derrotado a Alemanha por
4 – 0, estou convencida de que os portugueses estariam a torcer pelo Brasil –
portanto, a desolação também sentida por portugueses, poderá ter a ver com
aquela derrota, mas esta não a explica, pelo menos na totalidade (na verdade,
como explicar a desolação sentida por são-tomenses, angolanos, cabo-verdiano,
timorenses, chilenos, costa-riquenhos, sul-africanos, tunisinos, quenianos, e
outros “periféricos”?). Outro argumento que li é que nós, “os lusófonos”,
sentimos todos a derrota (faço parênteses para dizer que nunca uso este termo,
porém ele existe e infelizmente é utilizado para referir uma determinada
comunidade, mas isso é outro assunto que não cabe no âmbito desta crónica):
pois será assim, será pelo facto de sermos lusófonos – ainda que a
comunidade linguística possa ser um grande e fortíssimo elemento de
aproximação? Olhe que torci pela França, no Mundial de 1998, na final
com o Brasil, e não foi por motivos tácticos como podem estar a pensar: o
facto de então a equipa francesa ter muitos descendentes de africanos – o que
fazia com que eu jocosamente dissesse ser aquela a equipa dos meus “sobrinhos”
– o que fazia com que a Direita francesa, designadamente Le Pen, dissesse que
não se reconhecia naquela equipa, era mais importante do que uma qualquer
“solidariedade lusófona”… Assim como numa das partidas do Mundial de 2006,
num jogo entre o Brasil e o Gana, eu torci pelo Gana, tendo uma amiga
brasileira ficado “estupefacta” (expressão dela!) porque, dizia ela, era lógico
que eu deveria torcer pelo Brasil (eu, por meu turno, fiquei estupefacta não
ter ela percebido as minhas motivações). O facto de eu ser africana e,
logicamente para mim, me sentir mais proxima de qualquer equipa Africana, não
lhe dizia nada… Além de que, e voltando a este Mundial, se a Alemanha
estivesse a jogar contra a Costa Rica ou contra a Colómbia, por quem
torceríamos – pelos menos, a esmagadora maioria dos que me lêem? Volto a
ousar afirmar a minha convicção de que seria pela Costa Rica ou pela Colómbia.
E porquê? Será porque o futebol funciona também como mecanismo de comunicação
entre iguais – sendo que, neste caso, os iguais são os povos periféricos, os do
dito sul?
Agora
que o Mundial está (quase) no fim, lambidas as feridas e todo o mundo pronto a
escolher a sua equipa, portanto, não obstante todas as críticas sobre o poder
alienante do futebol, que eu subscrevo, o futebol é, sim, lugar de construção
identitária – e isso no sentido positivo dessa construção.
[i] Crónica lida aos microfones da
RDP-ÁFRICA (Lisboa) no dia 09 de Julho de 2014, com o título “O que pode o
futebol”. Adaptada.
[ii] Richard Giulianotti. Sociologia do
futebol. Dimensões históricas e sociológicas do esporte das multidões. São Paulo:
Nova Alexandria, 2002.
[iii] Claude Prévost. Literatura, política,
ideologia. Lisboa, Moraes Editores, 1976 (p. 171-172).
Sem comentários:
Enviar um comentário