terça-feira, 22 de julho de 2014

A FORÇA IDENTITÁRIA DO FUTEBOL (i)



Inocência Mata – Afropress, colunistas

Que existe uma estreita relação entre futebol e política, já ninguém contesta. Basta ver a forma como certos regimes se apropriam do futebol, e o manipulam, em diferentes momentos políticos da história. Um exemplo bem conhecido é o do uso que o Estado Novo fez do futebol e de seus símbolos (Eusébio, por exemplo)  em Portugal; ou como o futebol foi durante muito tempo o lugar onde os defensores de uma imagem asséptica da nação brasileira, sem dissensos e sem contradição, apresentando um Pelé como símbolo da democracia racial (ideia que o próprio internalizou e defende até hoje!), ou, hoje, o uso que no Brasil tem vindo a ser feito desse desporto, por parte do regime e de seus opositores, sobretudo estes que sempre haviam visto no futebol um instrumento de alienação popular pelo poder que detinham e representavam e que hoje o instrumentalizam para contestar o poder que perceberam que já não controlam na totalidade. A adesão sentimental que o futebol desperta, que não raro resulta em idolatria (decorrente da alienação social),  pode, portanto, ser manipulada, enquanto cultura de massas, para servir o poder dessa elite que apregoa a “cultura” color-blind (quando lhes convém, claro), tanto através do fenómeno da alienação quanto através do sentimento de “paixão nacional”.

Que existe uma profunda relação entre futebol e identidade, também ninguém contesta. Podemos até pensar que a nossa opção de torcida é racional, sobretudo em jogos em que competem selecções nacionais, mas optarmos torcer por uma equipa em vez da equipa adversária é uma opção grandemente identitária e não tão “racional” ditada por razões meramente técnicas. E isso acontece mesmo em jogos nacionais, isto é, quando joga o Progresso do Sambizanga e o Primeiro de Agosto, em Angola, ou o Sporting e o Futebol Clube do Porto, em Portugal.

Pode é parecer menos natural, porque menos visível, a relação entre futebol e ideologia, embora essa relação já esteja muito estudada por historiadores da cultura, sociólogos e politólogos. No seu livro Sociologia do futebol: dimensões históricas e sociológicas do esporte das multidões[ii], Richard Giulianotti mostra a relação entre futebol e ideologia, particularmente, no nacional-socialismo, no Estado Novo português, na ditadura militar brasileira, e antes, a ideologia do imperialismo britânico do século XIX. Exactamente por se tratar de um fenómeno cultural de massas, o futebol não é isento de ideologia, aqui entendida como “um conjunto estruturado de imagens, de representações, de mitos, determinando certos tipos de comportamentos, de práticas, de hábitos e funcionando (...) como um verdadeiro inconsciente”[iii].

Vem tudo isso a propósito do profundo, desvastador mal-estar sentido pelos, eu ousaria dizer, 99% dos meus ouvintes neste momento [no dia 09 de Julho] com a estrondosa derrota do Brasil neste Mundial de 2014. Eu estava estado de choque e desliguei a televisão ao quarto golo sem resposta; sofri, deprimi-me, amaldiçoei o mau comportamento do Thiago Silva, a lesão do Neymar, a solidão do Júlio César, as opções do Scolari. E porquê tudo isto? Tive de fazer um esforço para encarar aquilo como realmente é: um jogo e nada mais, que não iria mudar a minha vida! Ora, alguém insinuou-me que tal se deveu, sobretudo tratando-se de portugueses, ao facto de se ter estado à espera que o Brasil “vingasse” outra estrondosa derrota, a de Portugal. Eu não creio que esta relação (desolação è vingança) seja tão linear: mesmo que Portugal tivesse derrotado a Alemanha por 4 – 0, estou convencida de que os portugueses estariam a torcer pelo Brasil – portanto, a desolação também sentida por portugueses, poderá ter a ver com aquela derrota, mas esta não a explica, pelo menos na totalidade (na verdade, como explicar a desolação sentida por são-tomenses, angolanos, cabo-verdiano, timorenses, chilenos, costa-riquenhos, sul-africanos, tunisinos, quenianos, e outros “periféricos”?). Outro argumento que li é que nós, “os lusófonos”, sentimos todos a derrota (faço parênteses para dizer que nunca uso este termo, porém ele existe e infelizmente é utilizado para referir uma determinada comunidade, mas isso é outro assunto que não cabe no âmbito desta crónica): pois será assim, será pelo facto de sermos lusófonos – ainda que a comunidade linguística possa ser um grande e fortíssimo elemento de aproximação? Olhe que torci pela França, no Mundial de 1998, na final com  o Brasil, e não foi por motivos tácticos como podem estar a pensar: o facto de então a equipa francesa ter muitos descendentes de africanos – o que fazia com que eu jocosamente dissesse ser aquela a equipa dos meus “sobrinhos” – o que fazia com que a Direita francesa, designadamente Le Pen, dissesse que não se reconhecia naquela equipa, era mais importante do que uma qualquer “solidariedade lusófona”… Assim como numa das partidas do Mundial de 2006, num jogo entre o Brasil e o Gana, eu torci pelo Gana, tendo uma amiga brasileira ficado “estupefacta” (expressão dela!) porque, dizia ela, era lógico que eu deveria torcer pelo Brasil (eu, por meu turno, fiquei estupefacta não ter ela percebido as minhas motivações). O facto de eu ser africana e, logicamente para mim, me sentir mais proxima de qualquer equipa Africana, não lhe dizia nada… Além  de que, e voltando a este Mundial, se a Alemanha estivesse a jogar contra a Costa Rica ou contra a Colómbia, por quem torceríamos – pelos menos,  a esmagadora maioria dos que me lêem? Volto a ousar afirmar a minha convicção de que seria pela Costa Rica ou pela Colómbia. E porquê? Será porque o futebol funciona também como mecanismo de comunicação entre iguais – sendo que, neste caso, os iguais são os povos periféricos, os do dito sul?

Agora que o Mundial está (quase) no fim, lambidas as feridas e todo o mundo pronto a escolher a sua equipa, portanto, não obstante todas as críticas sobre o poder alienante do futebol, que eu subscrevo, o futebol é, sim, lugar de construção identitária – e isso no sentido positivo dessa construção.

[i] Crónica lida aos microfones da RDP-ÁFRICA (Lisboa) no dia 09 de Julho de 2014, com o título “O que pode o futebol”. Adaptada.
[ii] Richard Giulianotti. Sociologia do futebol. Dimensões históricas e sociológicas do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.
[iii] Claude Prévost. Literatura, política, ideologia. Lisboa, Moraes Editores, 1976 (p. 171-172).

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