JOSÉ VÍTOR MALHEIROS – Público,
opinião
O
decreto agora aprovado é um gesto anti-patriótico, um gesto contra a segurança
social e um gesto contra os pobres
Uma
lei ou um decreto não entram em vigor quando são aprovados pelo Governo ou pelo
Parlamento, nem sequer quando são promulgados pelo Presidente da República, mas
apenas quando são publicados. Numa democracia, é o facto de dar a conhecer as
leis aos cidadãos e de as expor ao julgamento público (porque, mesmo depois de
entrar em vigor, uma lei pode sempre ser revogada ou alterada se for julgada
injusta ou ineficaz) que as torna de facto leis da República.
A
publicação é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para conferir a
uma lei a sua dignidade e a sua validade porque a publicação, o conhecimento
pelo povo, é a condição primeira da participação e da escolha democrática.
Mas
este está longe de ser o único caso em que a publicação, a transparência, a
exposição ao julgamento público é considerada essencial à validade de um
processo político ou jurídico. Todos conhecemos o caso dos casamentos,
contratos públicos, onde é obrigatória a publicação prévia de banhos e a sua
celebração de porta aberta, ou o caso dos julgamentos, cerimónias públicas por
excelência, onde apenas circunstâncias excepcionais, relacionadas com a
protecção de valores superiores e devidamente justificadas (protecção de
menores, por exemplo) podem permitir a sua realização de porta fechada.
Mesmo
no caso das leis, a publicação não é um procedimento apenas devido após a
conclusão do processo. Numa democracia, todo o processo de produção das leis
tem de ser absolutamente transparente e estar sempre exposto ao escrutínio
público. O povo tem o direito a saber quem propôs uma lei, quem escreveu a
proposta, quem foi ouvido para a sua preparação, que discussão teve lugar, quem
defendeu que posição e com que argumentos, que alterações lhe foram
introduzidas durante a discussão, quem a aprovou, quem votou contra e quem se
absteve e com que argumentos, etc.
E
esta transparência não se pode restringir à discussão nos plenários do
Parlamento, que é a parte mais espectacular mas a mais superficial da produção
legislativa. Ela tem de incluir todos os trâmites processuais, incluindo as
posições das inúmeras entidades cuja consulta os deputados considerem
necessária e que deveriam ser sempre disponibilizadas para consulta dos
cidadãos, no dossier de documentos preparatórios que deveria estar disponível
nos sites do Parlamento e do Governo para consulta pública, ao lado de cada
diploma em discussão ou aprovado.
Qualquer
sonegação de informação, qualquer encobrimento habilidoso fere de morte o
processo legislativo e descredibiliza os políticos e, por arrasto, a própria
democracia. É por isso que é sempre particularmente grave ver o mês de Agosto
ou o período do Natal serem aproveitados para "enfiar" à sucapa
algumas leis controversas ou uns concursos destinados apenas a alguns amigos
avisados, enquanto o povo está distraído, em férias e festas. É esse o caso da
FCT, que abre e fecha em Agosto um concurso para bolsas de gestão de ciência e
tecnologia ou, o que é muito mais grave, o caso do decreto da Assembleia da
República de 25 de Julho que "autoriza o Governo a legislar sobre o regime
jurídico da exploração e prática do jogo online".
Na
prática, como já foi denunciado nomeadamente por José Ribeiro e Castro (único
deputado da maioria a votar contra, honra lhe seja feita) este decreto,
contestado por toda a oposição, abre a porta à privatização dos chamados jogos
de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o Euromilhões, com a desculpa
aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso
passa pela sua liberalização. É falso, mas o lobby do jogo, que
possui muitos milhões para influenciar vontades, não tem olhado a meios nem a
despesas para enfiar esta cunha através da qual espera conseguir finalmente
destruir o monopólio da Misericórdia de Lisboa e apoderar-se dos seus enormes
lucros, que actualmente alimentam a Segurança Social.
A
iniciativa legislativa que pretende dar ao bandido o ouro da Misericórdia de
Lisboa é do secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, e a ideia é
simples. O que se pretende é abrir uma excepção no domínio dos jogos de azar,
permitindo a entrada de entidades privadas, de forma a destruir aquela que tem
sido a argumentação do Estado português na União Europeia em defesa do
monopólio do jogo por parte da Misericórdia - o seu objectivo social, a
necessidade de não promover o vício do jogo, etc...
A
actual situação portuguesa é perfeitamente compatível com as regras da UE (ao
contrário do que dizem as vozes seduzidas pelo lobby) mas deixará de o ser
se o próprio Estado abrir uma excepção. O decreto agora aprovado é por isso um
gesto anti-patriótico, que mina uma posição de defesa nacional; um gesto contra
a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto
contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em
favor das grandes empresas de jogo, que assim conquistam mais uma ferramenta de
alienação e de exploração dos trabalhadores. Uma das portas que o novo decreto
abre é, sintomática e tristemente, a publicidade ao jogo, numa era onde se
tenta restringir cada vez mais a publicidade ao tabaco e ao álcool por razões
de saúde pública.
O
jovem Adolfo Mesquita Nunes está orgulhoso porque sabe que, com esta fulgurante
medida, a sua carreira política e o seu futuro estão garantidos. O Governo, por
seu lado, exulta, com mais uma medida que nos vai roubar a todos mais umas
centenas de milhões de euros por ano e enfiá-los no bolso de grandes senhores
da finança.
Sem comentários:
Enviar um comentário