Carlos
Veiga: “Se houver vontade política de implementar aquilo que falta materializar
na Constituição teremos uma democracia mais perfeita
Carlos
Veiga liderou a mudança que conduziu ao pluripartidarismo em Cabo Verde alicerçado
na Constituição de 1992. Nesta entrevista o primeiro presidente do MpD e antigo
primeiro-ministro analisa o processo da aprovação da Magna Carta, a relação dos
três presidentes da segunda República com o texto constitucional e as virtudes
e fraquezas do documento aprovado há 22 anos.
Expresso
das ilhas – Para começar. Qual é o pior e o melhor artigo das nossas
constituições?
Carlos
Veiga – Eu acho que o pior artigo da Constituição era de facto o artigo 4º
da Constituição de 1980 que impedia o funcionamento de um sistema democrático,
digamos assim. Qual é o melhor artigo da nossa actual Constituição? Eu acho que
são os artigos 1º e o 2º. O 2º que define o Estado de Direito Democrático, que
diz que a República de Cabo Verde organiza-se em Estado de Direito Democrático,
assente na soberania popular, no pluralismo de expressão e de organização
política democrática e no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. Isto
depois de no artigo 1º se ter dito que Cabo Verde, como república democrática,
garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a
inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de
toda a comunidade humana, da paz e da justiça. Eu acho que isso são os
elementos fundamentais. Depois, o nº 2 do artigo segundo vem complementar a
definição do Estado de Direito dizendo que respeita a natureza unitária do
Estado, a forma republicana, a democracia pluralista, a separação e
interdependência de poderes, separação entre as igrejas e o Estado, a
independência dos tribunais, a existência e autonomia do poder local e a
descentralização democrática da administração pública. Eu acho que é um artigo
feliz, porque sintetiza um conjunto de elementos fundamentais do Estado de
Direito Democrático, a partir de uma declaração também fundamental segundo a
qual a dignidade da pessoa humana prevalece sobre tudo o resto.
Portanto
há uma mudança de paradigma constitucional.
Não,
há uma mudança de regime, porque passa-se de um sistema não democrático,
portanto, de um não Estado de Direito, em que o Estado prevalece sobre as
pessoas, para um outro regime político em que as pessoas estão no centro. Elas
são destinatárias de toda a actuação política e a sua dignidade, no fundo,
sobrepõe-se a tudo o resto. Portanto, isto vai condicionar a própria
organização do Estado. É na base da dignidade da pessoa humana, da necessidade
da proximidade, que o Estado tem que ser descentralizado, é nessa base que tem
que haver direitos fundamentais e esses direitos têm que ser, de facto,
invioláveis, e é nessa base que o Estado se organiza para fazer respeitar e
garantir esses direitos. Portanto, eu penso que se trata de uma mudança de
regime, de uma mudança fundamental. Não há pontos de contacto entre os dois
regimes: um deles era, efectivamente, um regime ditatorial, em que os direitos
fundamentais eram instrumentalizados para serem colocados aos objectivos do
Estado - mas não só do Estado, sobretudo do partido único, que era o
partido-Estado - e agora você tem a pessoa no centro a condicionar quer a
organização, quer a tabela de direitos, quer a própria actividade do Estado que
está vinculada à legalidade e essa legalidade, por sua vez, está balizada pelos
direitos fundamentais.
Vivemos
os primeiros cinco anos da independência sem uma Carta Magna. Era possível
aspirar-se a mais?
Podia-se
aspirar a mais, porque a nossa independência é posterior ao 25 de Abril de 1974
e um conjunto de movimentações que ocorreram no mundo. Portanto, podia-se e
aspirava-se a mais. Tanto é que havia a obrigação de fazer uma Constituição e
na Constituição os direitos fundamentais teriam que vir – mais ou menos
instrumentalizados, mais ou menos funcionalizados, mas viriam, como vieram na Constituição
de 1980. Era possível aspirar a mais, era possível ter uma Carta Magna pelo
menos com os direitos fundamentais. A opção política foi não considerar isso
prioritário.
Já
para si a Constituição é o bem supremo.
É
isso. O bem supremo é mesmo a Constituição. Eu acho que um país tem que ter uma
Constituição material, portanto um catálogo de direitos fundamentais, a forma
de defesa desses direitos fundamentais. Tem que haver esse conjunto de
garantias de que esses direitos podem ser exercidos. Em qualquer democracia a
Constituição é fundamental. Ela pode não ser escrita, como acontece no Reino
Unido, mas este catálogo de direitos fundamentais e as garantias do seu
exercício têm que existir para podermos falar, de facto, num Estado de Direito.
Não
pode haver em circunstância alguma interesses superiores da Nação que se
sobreponham à Constituição?
Não
pode haver. Todos os grandes interesses da Nação têm que estar condensados na
Constituição. Por isso é que fazer uma Constituição é algo de grandioso, porque
ali está sintetizado tudo aquilo que é a aspiração de uma nação. Eu penso que a
nossa Constituição actual, na sua vivência, já demostrou isso mesmo: tem sido
capaz de sintetizar as aspirações dos cabo-verdianos a uma vida de paz, de
democracia e de desenvolvimento. Cada vez que nós lemos a nossa Constituição
com a devida atenção, nós encontramos caminhos claramente traçados, e sobretudo
uma flexibilidade que permite aos poderes e à sociedade orientarem-se para
aquilo que consideram ser a melhor solução. Eu acho que nós temos um bom quadro
constitucional.
Quantos
anos acha que são necessários para os cabo-verdianos interiorizarem os valores
da Constituição?
Eu
penso que tem que haver uma promoção da própria Constituição. A Constituição
deve ser aprendida nas escolas do nível mais básico ao secundário. Claro que
quanto mais escolas superiores de Direito nós tivermos, maior será o
conhecimento da Constituição. Eu penso que nos concursos públicos para o
funcionalismo a matéria da Constituição tem que ser central e depois
sectorizada em relação às áreas de cada um. Para fazermos isso tem que haver em
primeiro lugar vontade política sobretudo do governo. Mas eu creio que num
espaço de tempo de 10 anos, nós poderemos, de facto, ter uma cultura
constitucional razoável. A existência de um Tribunal Constitucional
favorecerá isso mesmo. Porque à medida que o Tribunal Constitucional vai
decidindo questões que ocorrem na vida das pessoas, das empresas e das
instituições, socorrendo-se da Constituição, vai-se tomando consciência da
importância deste organismo. Veja-se o que acontece agora em Portugal, ou na
Alemanha. Todo o cidadão alemão sabe que a Constituição é fundamental e o
Tribunal Constitucional alemão contribui muito para isso. Veja o que acontece
agora em Portugal, em situação de crise, e como o tribunal Constitucional tem
sido muito importante na vida concreta das pessoas. Portanto, nós precisamos do
Tribunal Constitucional para que as questões constitucionais possam ser
decididas e a partir daí se consiga ter uma orientação mais clara daquilo que
está na Constituição e daquilo que pode ou não ser feito. Eu diria que nas
relações entre o poder central e o poder local torna-se evidente a falta de um
Tribunal Constitucional. O ambiente de grande crispação que existe entre o
poder local e o poder central deve-se à inexistência de um Tribunal
Constitucional que possa dirimir os conflitos que surgirão sempre quando é
preciso repartir competências e a lei não consegue abranger todas as situações.
José
Maria Neves manifestou em 2012
a vontade de ver instalado o Tribunal Constitucional em 2013.
Porque é que estamos até ainda à espera?
José
Maria Neves é politicamente contra o Tribunal Constitucional. Aliás, o PAICV é
politicamente contra o Tribunal Constitucional. Votou na revisão constitucional
de 1999, depois confirmou em 2010, mas, de facto, não está convencido da
utilidade do Tribunal Constitucional. Arranja [José Maria Neves] todos os
pretextos, o custo, até já vai no sentido de dizer, ‘podemos criar uma
secção especial no Supremo Tribunal de Justiça’, que seriam mais custos também.
Portanto, não se põe a questão de custos para não criar o TC. Mas a verdade é
que no nosso sistema, em que existe uma instituição que não existe em muitas
constituições, que é o chamado amparo constitucional, este só pode funcionar se
houver um Tribunal Constitucional, porque você para pedir um amparo
constitucional tem que percorrer toda a cadeia dos tribunais e tem que chegar
ao Supremo Tribunal de Justiça. É do Supremo Tribunal que na maior parte dos
casos você vai requerer o amparo constitucional. Portanto, tem que ser um outro
tribunal, que não o próprio STJ. E num país que precisa de afirmar a sua
cultura constitucional (é já consenso na sociedade cabo-verdiana que temos uma
grande Constituição), se você precisa de afirmar essa cultura, tem de ter um TC
que se dedique, de facto, a dar vida a essa Constituição. É uma Constituição
tão viva, tão aberta e tão flexível às diversas soluções práticas. Eu penso que
faz todo o sentido que haja um Tribunal Constitucional.
Vieira
Lopes defende mais ou menos isso: não é multiplicando instituições que iremos
ter melhores juízes e melhor justiça. Qual a sua opinião?
Vieira
Lopes é uma pessoa muito inteligente, mas acho que ele está a dar uma opinião
muito condicionada por outras opiniões que ele tem. O TC não vai afectar
directamente a justiça que nós temos; vai afectar quando estiverem em causa
valores fundamentais e sobretudo quando o Estado, através de alguns dos seus
órgãos, ofender profundamente um desses valores fundamentais. A circunstância
de podermos ter um TC que crie jurisprudência sobre determinada matéria, que
possa [fazê-lo] como um tribunal jurídico-político que é diferente dos outros –
os outros cumprem a lei de uma forma quase positiva – aí o TC tem que
interpretar a Constituição que não é apenas constituída por normas puramente
jurídicas, tem valores e tem princípios. Mas se reparar o que tem dito o sr.
presidente do STJ e o que disse agora recentemente a sra. presidente do CSMJ: a
falta de um TC já está a afectar o normal funcionamento do STJ. E porquê?
Porque o paradigma da nossa justiça impõe que as questões sejam decididas em
primeira instância – de facto e de direito. Há uma segunda instância que será a
Relação de facto e de direito, mas o recurso para o STJ será essencialmente um
recurso de direito. Portanto, as decisões do STJ passarão a ser decisões
tecnicamente melhor preparadas sobre as questões de direito que são muitíssimas
e irão parecer seguramente. O TC está fora disto. Mas enquanto o nosso STJ
estiver a fazer de TC ele não estará em condições de desempenhar cabalmente
essa função que é a de fazer jurisprudência nacional, unificar decisões que são
contraditórias nos diversos tribunais de primeira instância, ou das diversas
relações, etc. O STJ não poderá fazer esse papel enquanto ele estiver a fazer
também as vezes do TC. Devemos ter em conta que a justiça é o pilar dos órgãos
de soberania que menos gasta em
Cabo Verde e no entanto é aquele que nos assegura os direitos
fundamentais que são a coisa mais importante que nós temos. Portanto, devemos
gastar mais com a justiça, nós precisamos de mais magistrados, precisamos que o
paradigma que está na Constituição do funcionamento dos tribunais seja
aplicado, mas precisamos que a Constituição também funcione. Quando há
violações, sobretudo da parte do Estado, das regras fundamentais da nossa
organização, que haja uma entidade que o diga. Isso é fundamental.
São
os tais custos da democracia.
São
custos da democracia. Tal como você não faz democracia sem partidos, também
você não consegue uma cultura constitucional das pessoas que invocam ‘eu pago
os meus impostos, mas eu tenho os meus direitos e exijo os meus direitos’, como
o americano faz. Mas como é que eu sei quais são os meus direitos se eu não
conheço a Constituição, se eu não tenho uma cultura constitucional, ou mesmo
que conheça, se eu não tenho um tribunal que decida. Um exemplo: a propósito da
taxa ecológica, existe pendente um processo de declaração de
inconstitucionalidade que está no STJ sem dia de sair, porque não há prazos
estabelecidos. Então surge a crispação entre os municípios e o poder central. O
governo a dizer que ele está certo e os municípios a dizerem que não. Uma
decisão do TC acabaria com essa crispação, porque diria, ‘meus senhores, o que
diz a Constituição é isto’. E acabaria essa crispação e ganharíamos todos.
Como
vê a relação dos três Presidentes da Segunda República com a Constituição
de Cabo Verde?
Nitidamente
o Dr. Jorge Carlos Fonseca é muito mais um presidente da Constituição do que os
outros. Nitidamente, não tenho dúvidas nenhumas a esse respeito. Ele fez
campanha com isso e penso que uma das razões por que ele foi eleito foi porque
ele se declarou um presidente da Constituição. O Dr. António Mascarenhas
Monteiro também foi importante, porque foi o primeiro presidente no âmbito da
Constituição. Não creio que o Dr. Mascarenhas Monteiro tenha feito nada de
grave contra a Constituição. Agora, que o actual presidente é mais proactivo
para a Constituição, não tenho dúvidas. Pedro Pires, não ele directamente, mas
as pessoas da campanha dele, diziam que ele não precisava da Constituição.
Portanto, ele não deu muito valor à Constituição.
Em
que momentos os três Presidentes marcaram pela positiva ou pela negativa na
defesa da Constituição?
Mascarenhas
Monteiro, como disse, não houve nenhum momento em que ele tivesse estado contra
a Constituição. O momento inicial da sua relação com a Constituição não foi
bom. Todos se lembrarão que ele hesitou em promulgar a própria Constituição
embora estivesse obrigado a isso e fez uma declaração de alguma forma de
discordância com o sistema de governo estabelecido, porque ele entendia que os
poderes presidenciais estavam reduzidos. Esse momento inicial não foi bom, mas
depois Mascarenhas Monteiro cumpriu a sujeição à Constituição. É claro que ele
não foi um presidente proactivo a favor da Constituição, nada disso. Pedro
Pires teve um momento muito infeliz quando acabou por promulgar uma legislação
que reconhecia que podia ser inconstitucional, mas por razões de ordem política
promulgou a lei que depois o TC veio a declarar inconstitucional. Eu acho que
foi um momento infelicíssimo para qualquer Presidente da República, porque uma
das funções principais do PR é defender a Constituição. Pedro Pires não é um
homem da Constituição. Ele não se revê na nossa Constituição, isso é claro. Ele
não deu valor à Constituição e a prova disso é que por razões de ordem política
aceitou que se violasse a Constituição, quando ele é o primeiro guardião da
Constituição. Não dá valor à Constituição, nunca deu e não conta dar. É por
isso que ele é contra o Tribunal Constitucional, porque acha que não é
necessário garantir a Constituição. Para quê? Para ele não é muito importante.
O actual PR tem sido um presidente pró-Constituição, já vetou diplomas com
fundamento na inconstitucionalidade, na forma de ver dele. Eu penso que tem
sido em todos os momentos, nas suas intervenções, um defensor da Constituição.
Ainda recentemente sobre a questão dos símbolos nacionais ele voltou a repetir
que não há democracia fora da Constituição. Eu estou plenamente satisfeito com
a forma como ele se tem posicionado como um promotor da Constituição.
Como
decorreu o processo da aprovação da Constituição de
1992?
Foi
um processo bonito, muita gente participou. Foi um projecto que foi amplamente
divulgado na sociedade, foi debatido no Parlamento artigo a artigo; passamos
muitos dias a debater até ser aprovado. Infelizmente o PAICV não participou
nessa votação, saiu. Mas foi um processo muito bonito do nosso ponto de vista,
tanto assim é que temos hoje uma Constituição consensual, toda a gente se revê
nela. Eu acho que um dos elementos que mais credibilidade dá ao nosso país é
termos essa Constituição.
Quais
são as grandes virtudes e fraquezas da Constituição de 1992?
A
grande virtude da nossa Constituição é a sua flexibilidade. Penso que não sendo
uma Constituição pequena é, na sua dimensão, adequada às necessidades que nós
tínhamos nessa altura. Estávamos a sair de um regime de partido único e era
necessário dizer coisas que poderiam ficar apenas na lei, mas que se calhar foi
melhor ter na Constituição, porque dá uma consistência maior, não pode ser
alterada do ‘pé para a mão’. Se nós não tivéssemos posto os símbolos da
República na Constituição, penso que seriam mudados em 2001 por uma maioria
conjuntural. Portanto, esta é a sua força, é a sua capacidade de ter congregado
um conjunto de valores que hoje são consensuais. Eu penso que o ponto fraco é
ainda não termos um Tribunal Constitucional; é um ponto fraco, porque o TC está
previsto na Constituição e não se está a implementar a Constituição. E de uma
forma quase impune, porque desde 1999 estamos a lutar para que haja um Tribunal
Constitucional e não estamos a conseguir. Outros órgãos constitucionais só
recentemente foram implementados, mas há alguns que também ainda não estão. Há
coisas no domínio da justiça que seriam importantes para os cidadãos como os
tribunais de pequenas causas, os mecanismos expeditos para defender os direitos
dos cidadãos, que estão previstos no sector da justiça e que não estão a ser
implementados. A culpa não é da Constituição, mas da sua implementação. Aí a
responsabilidade é constitucional; se houvesse um Tribunal Constitucional e os
cidadãos já tivessem adquirido uma cultura constitucional como a que existe,
por exemplo, nos Estados Unidos, eu penso que já teria havido acções no
tribunal contra o governo, contra a Assembleia Nacional, para que o TC os
obrigasse a regular um conjunto de matérias. Mas eu penso que nós temos um
excelente texto e haja vontade política de implementar aquilo que falta
materializar na Constituição e teremos, de facto, uma democracia mais perfeita
do que temos hoje.
É
tido hoje como um dos pais da democracia cabo-verdiana e da Constituição. Como
pensa que será julgado pela história?
Bom,
primeiro não me considero pai da Constituição, nem da democracia. Nunca disse
isso. Fui o rosto para no fundo corporizar milhares de outros rostos. O advento
da democracia nos anos 90 é um produto colectivo, de muita gente que participou
e tem muito a dizer. Isso foi decisivo. Eu fui o rosto a corporizar esses
rostos por vontade deles. Com o meu julgamento da história não estou muito
preocupado. Quero ser uma pessoa tranquila, feliz. Tenho procurado ao longo da
minha vida ser um bom cidadão, ser honesto, sério, trabalhador e servir o meu
país naquilo que estiver ao meu alcance. A história há-de me julgar mas não
estou preocupado com isso.
terça,
30 setembro 2014 00:00
*Título PG
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