O
ex-primeiro-ministro guineense, Carlos Correia, é uma das memórias vivas do
episódio histórico que, para muitos, marca o início da guerra de libertação da
Guiné: o "Massacre de Pidjiguiti".
Em
1959, Carlos Correia ajudou a mobilizar trabalhadores do porto de Bissau para
uma greve por melhores salários - que aconteceria no dia 3 de Agosto daquele
ano.
A
violenta repressão ao movimento fez 50 mortos e uma centena de feridos. Carlos
Correia era funcionário da Casa Gouveia, um dos maiores comércios de Bissau,
ligada à Companhia União Fabril de Portugal. Ele ajudou a mobilizar o grupo de
trabalhadores grevistas, viu corpos sendo retirados do porto, mas diz que não
esteve diretamente envolvido no episódio.
Nesta
entrevista à DW África, Carlos Correia lembra a situação dos trabalhadores
guineenses na época e as motivações para o levante pacífico que acabou sendo o
estopim para a escalada de acontecimentos que levou à luta armada.
O
ex-primeiro-ministro também revela o esforço de alfabetização em massa do
movimento de libertação. A formação não tinha como objetivo apenas instruir
ideologicamente guerrilheiros, mas também dar-lhes condições de manusear o
armamento importado.
DW
África: Como o senhor se salvou do massacre?
Carlos
Correia (CC): Eu não estive metido no barulho. Eu era um funcionário da
Casa Gouveia. Eu aprendi muito com os marinheiros e com aqueles trabalhadores
simples da Casa Gouveia. Eu era empregado no setor de contabilidade da Gouveia.
De vez em quando, eu era chamado para fazer o pagamento dos trabalhadores em Bissau. Constatava
que alguns marinheiros recebiam salários muito baixos e se socorriam com vales.
Isto pode parecer, mas não era favorável aos trabalhadores porque recebiam
parte do salário e um complemento com géneros alimentícios e outras
mercadorias. Eles acabavam se tornando um “cliente certo” da Gouveia.
Tiramos
lições destas situações vividas pelos marinheiros, o que nos mobilizou
politicamente. Neste dia, quando soou o alarme eu nem saí com medo de perder a
calma. Depois da ordem de serviço, eu saí. Era o momento em que estavam
retirando os corpos e colocavam nos caminhões para levar ao hospital. Foi aí
que eu tive um “desabafo”. Os polícias vieram me provocar. Eu reagi e fui
preso. Portanto, eu não estive diretamente envolvido, mas tinha contato com os
marinheiros e conversávamos muito. Como ali estava um jovem também de família
simples, eles tinham confiança em mim.
DW-África:
O senhor foi perseguido depois.
CC: Como
o gerente da Gouveia era chefe do partido nacional, futebolista e jogava numa
equipa cujo presidente era o chefe da polícia, acabei sendo libertado no dia
seguinte. Os colonialistas pensaram que os marinheiros poderiam organizar outra
mobilização. A PIDE sede questionou os seus representantes em Bissau, se havia
um indivíduo que se realçou naquela situação. Eles deram ordem para que eu
fosse preso. O camarada Aristides (Pereira), que era chefe dos correios,
recebia estas transmissões secretas e mandou me avisar. Eu fugi.
DW
África: O que mudou em sua vida a partir desta situação?
CC: Houve
uma reunião aqui em Bissau nesta altura, quando se reorientou a política do
PAIGC. Definiu-se que era preciso deixar de lado as ações nas grandes cidades
porque o colonialista coordenava as suas forças nestes locais. E também era
importante que todos se preparassem para todas as possibilidades.
Esperar
o melhor, mas se preparar para o pior. Ao invés de continuarmos a fazer
reivindicações enfrentando a força colonial nos centros urbanos, era necessário
preciso se retirar para o interior para se preparar para o eventual
desenvolvimento da luta armada, caso o colonialista não aceitasse as nossas
reivindicações políticas e o que foi definido na Assembleia Geral da ONU de
1960 quando se definiu a auto-determinação dos povos. Quando eu fugi para
Conacri, muitos outros jovens também saíram. Muitos estavam a procurar emprego
em um país africano independente, outros tinham razões políticas. Nesta altura,
Amílcar constituiu um grupo para dar formações políticas e eu o ajudava.
DW
África: A luta armada exigiu que todos adquirissem conhecimento técnico
rapidamente.
CC: Quando
se começou a dominar o território este problema persistiu. Por volta de 90 por
cento da população era analfabeta. Para manusear as armas que tínhamos, era
necessário saber ler. Então, foram criadas escolas, sobretudo depois do
Congresso de Cassacá, em 1963. O congresso definiu também a criação de
hospitais para tratar dos nossos feridos. Em 1965, foi criada a primeira
escola-piloto – montada em Conacri, frequentada por filhos dos quadros que
estavam em serviço em Conacri e outros alunos selecionados no interior da
Guiné. Mais tarde foram criados semi-internatos no interior da Guiné.
DW
África: O que restava à ser discutido para que ocorresse um acordo de paz
depois do 25 de Abril de 1974?
CC: Era
a independência. Havia a teimosia do governo português. Antes e ao longo de
toda a luta armada, o PAIGC exigia que Portugal cumprisse o que havia sido
definido pela ONU: o direito de autonomia ao povo guineense. Chegou-se ao 25 de
Abril e, mesmo assim, Portugal não concedeu a independência. Foi preciso a
negociação até o reconhecimento da independência proclamada unilateralmente em
19 de abril de 1973.
Marcio
Pessoa – Deutsche Welle
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