quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Cabo Verde: CARLOS VEIGA E A “DEMOCRACIA MAIS PERFEITA” - entrevista




Carlos Veiga: “Se houver vontade política de implementar aquilo que falta materializar na Constituição teremos uma democracia mais perfeita


Carlos Veiga liderou a mudança que conduziu ao pluripartidarismo em Cabo Verde alicerçado na Constituição de 1992. Nesta entrevista o primeiro presidente do MpD e antigo primeiro-ministro analisa o processo da aprovação da Magna Carta, a relação dos três presidentes da segunda República com o texto constitucional e as virtudes e fraquezas do documento aprovado há 22 anos.

Expresso das ilhas – Para começar. Qual é o pior e o melhor artigo das nossas constituições?

Carlos Veiga – Eu acho que o pior artigo da Constituição era de facto o artigo 4º da Constituição de 1980 que impedia o funcionamento de um sistema democrático, digamos assim. Qual é o melhor artigo da nossa actual Constituição? Eu acho que são os artigos 1º e o 2º. O 2º que define o Estado de Direito Democrático, que diz que a República de Cabo Verde organiza-se em Estado de Direito Democrático, assente na soberania popular, no pluralismo de expressão e de organização política democrática e no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. Isto depois de no artigo 1º se ter dito que Cabo Verde, como república democrática, garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça. Eu acho que isso são os elementos fundamentais. Depois, o nº 2 do artigo segundo vem complementar a definição do Estado de Direito dizendo que respeita a natureza unitária do Estado, a forma republicana, a democracia pluralista, a separação e interdependência de poderes, separação entre as igrejas e o Estado, a independência dos tribunais, a existência e autonomia do poder local e a descentralização democrática da administração pública. Eu acho que é um artigo feliz, porque sintetiza um conjunto de elementos fundamentais do Estado de Direito Democrático, a partir de uma declaração também fundamental segundo a qual a dignidade da pessoa humana prevalece sobre tudo o resto.

Portanto há uma mudança de paradigma constitucional.

Não, há uma mudança de regime, porque passa-se de um sistema não democrático, portanto, de um não Estado de Direito, em que o Estado prevalece sobre as pessoas, para um outro regime político em que as pessoas estão no centro. Elas são destinatárias de toda a actuação política e a sua dignidade, no fundo, sobrepõe-se a tudo o resto. Portanto, isto vai condicionar a própria organização do Estado. É na base da dignidade da pessoa humana, da necessidade da proximidade, que o Estado tem que ser descentralizado, é nessa base que tem que haver direitos fundamentais e esses direitos têm que ser, de facto, invioláveis, e é nessa base que o Estado se organiza para fazer respeitar e garantir esses direitos. Portanto, eu penso que se trata de uma mudança de regime, de uma mudança fundamental. Não há pontos de contacto entre os dois regimes: um deles era, efectivamente, um regime ditatorial, em que os direitos fundamentais eram instrumentalizados para serem colocados aos objectivos do Estado - mas não só do Estado, sobretudo do partido único, que era o partido-Estado - e agora você tem a pessoa no centro a condicionar quer a organização, quer a tabela de direitos, quer a própria actividade do Estado que está vinculada à legalidade e essa legalidade, por sua vez, está balizada pelos direitos fundamentais.

Vivemos os primeiros cinco anos da independência sem uma Carta Magna. Era possível aspirar-se a mais?

Podia-se aspirar a mais, porque a nossa independência é posterior ao 25 de Abril de 1974 e um conjunto de movimentações que ocorreram no mundo. Portanto, podia-se e aspirava-se a mais. Tanto é que havia a obrigação de fazer uma Constituição e na Constituição os direitos fundamentais teriam que vir – mais ou menos instrumentalizados, mais ou menos funcionalizados, mas viriam, como vieram na Constituição de 1980. Era possível aspirar a mais, era possível ter uma Carta Magna pelo menos com os direitos fundamentais. A opção política foi não considerar isso prioritário.

Já para si a Constituição é o bem supremo.

É isso. O bem supremo é mesmo a Constituição. Eu acho que um país tem que ter uma Constituição material, portanto um catálogo de direitos fundamentais, a forma de defesa desses direitos fundamentais. Tem que haver esse conjunto de garantias de que esses direitos podem ser exercidos. Em qualquer democracia a Constituição é fundamental. Ela pode não ser escrita, como acontece no Reino Unido, mas este catálogo de direitos fundamentais e as garantias do seu exercício têm que existir para podermos falar, de facto, num Estado de Direito.

Não pode haver em circunstância alguma interesses superiores da Nação que se sobreponham à Constituição?

Não pode haver. Todos os grandes interesses da Nação têm que estar condensados na Constituição. Por isso é que fazer uma Constituição é algo de grandioso, porque ali está sintetizado tudo aquilo que é a aspiração de uma nação. Eu penso que a nossa Constituição actual, na sua vivência, já demostrou isso mesmo: tem sido capaz de sintetizar as aspirações dos cabo-verdianos a uma vida de paz, de democracia e de desenvolvimento. Cada vez que nós lemos a nossa Constituição com a devida atenção, nós encontramos caminhos claramente traçados, e sobretudo uma flexibilidade que permite aos poderes e à sociedade orientarem-se para aquilo que consideram ser a melhor solução. Eu acho que nós temos um bom quadro constitucional.

Quantos anos acha que são necessários para os cabo-verdianos interiorizarem os valores da Constituição?

Eu penso que tem que haver uma promoção da própria Constituição. A Constituição deve ser aprendida nas escolas do nível mais básico ao secundário. Claro que quanto mais escolas superiores de Direito nós tivermos, maior será o conhecimento da Constituição. Eu penso que nos concursos públicos para o funcionalismo a matéria da Constituição tem que ser central e depois sectorizada em relação às áreas de cada um. Para fazermos isso tem que haver em primeiro lugar vontade política sobretudo do governo. Mas eu creio que num espaço de tempo de 10 anos, nós poderemos, de facto, ter uma cultura constitucional razoável.  A existência de um Tribunal Constitucional favorecerá isso mesmo. Porque à medida que o Tribunal Constitucional vai decidindo questões que ocorrem na vida das pessoas, das empresas e das instituições, socorrendo-se da Constituição, vai-se tomando consciência da importância deste organismo. Veja-se o que acontece agora em Portugal, ou na Alemanha. Todo o cidadão alemão sabe que a Constituição é fundamental e o Tribunal Constitucional alemão contribui muito para isso. Veja o que acontece agora em Portugal, em situação de crise, e como o tribunal Constitucional tem sido muito importante na vida concreta das pessoas. Portanto, nós precisamos do Tribunal Constitucional para que as questões constitucionais possam ser decididas e a partir daí se consiga ter uma orientação mais clara daquilo que está na Constituição e daquilo que pode ou não ser feito. Eu diria que nas relações entre o poder central e o poder local torna-se evidente a falta de um Tribunal Constitucional. O ambiente de grande crispação que existe entre o poder local e o poder central deve-se à inexistência de um Tribunal Constitucional que possa dirimir os conflitos que surgirão sempre quando é preciso repartir competências e a lei não consegue abranger todas as situações.
                         
José Maria Neves manifestou em 2012 a vontade de ver instalado o Tribunal Constitucional em 2013. Porque é que estamos até ainda à espera?

José Maria Neves é politicamente contra o Tribunal Constitucional. Aliás, o PAICV é politicamente contra o Tribunal Constitucional. Votou na revisão constitucional de 1999, depois confirmou em 2010, mas, de facto, não está convencido da utilidade do Tribunal Constitucional. Arranja [José Maria Neves] todos os pretextos, o custo, até já vai no sentido de dizer, ‘podemos criar uma secção especial no Supremo Tribunal de Justiça’, que seriam mais custos também. Portanto, não se põe a questão de custos para não criar o TC. Mas a verdade é que no nosso sistema, em que existe uma instituição que não existe em muitas constituições, que é o chamado amparo constitucional, este só pode funcionar se houver um Tribunal Constitucional, porque você para pedir um amparo constitucional tem que percorrer toda a cadeia dos tribunais e tem que chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. É do Supremo Tribunal que na maior parte dos casos você vai requerer o amparo constitucional. Portanto, tem que ser um outro tribunal, que não o próprio STJ. E num país que precisa de afirmar a sua cultura constitucional (é já consenso na sociedade cabo-verdiana que temos uma grande Constituição), se você precisa de afirmar essa cultura, tem de ter um TC que se dedique, de facto, a dar vida a essa Constituição. É uma Constituição tão viva, tão aberta e tão flexível às diversas soluções práticas. Eu penso que faz todo o sentido que haja um Tribunal Constitucional.

Vieira Lopes defende mais ou menos isso: não é multiplicando instituições que iremos ter melhores juízes e melhor justiça. Qual a sua opinião?

Vieira Lopes é uma pessoa muito inteligente, mas acho que ele está a dar uma opinião muito condicionada por outras opiniões que ele tem. O TC não vai afectar directamente a justiça que nós temos; vai afectar quando estiverem em causa valores fundamentais e sobretudo quando o Estado, através de alguns dos seus órgãos, ofender profundamente um desses valores fundamentais. A circunstância de podermos ter um TC que crie jurisprudência sobre determinada matéria, que possa [fazê-lo] como um tribunal jurídico-político que é diferente dos outros – os outros cumprem a lei de uma forma quase positiva – aí o TC tem que interpretar a Constituição que não é apenas constituída por normas puramente jurídicas, tem valores e tem princípios. Mas se reparar o que tem dito o sr. presidente do STJ e o que disse agora recentemente a sra. presidente do CSMJ: a falta de um TC já está a afectar o normal funcionamento do STJ. E porquê? Porque o paradigma da nossa justiça impõe que as questões sejam decididas em primeira instância – de facto e de direito. Há uma segunda instância que será a Relação de facto e de direito, mas o recurso para o STJ será essencialmente um recurso de direito. Portanto, as decisões do STJ passarão a ser decisões tecnicamente melhor preparadas sobre as questões de direito que são muitíssimas e irão parecer seguramente. O TC está fora disto. Mas enquanto o nosso STJ estiver a fazer de TC ele não estará em condições de desempenhar cabalmente essa função que é a de fazer jurisprudência nacional, unificar decisões que são contraditórias nos diversos tribunais de primeira instância, ou das diversas relações, etc. O STJ não poderá fazer esse papel enquanto ele estiver a fazer também as vezes do TC. Devemos ter em conta que a justiça é o pilar dos órgãos de soberania que menos gasta em Cabo Verde e no entanto é aquele que nos assegura os direitos fundamentais que são a coisa mais importante que nós temos. Portanto, devemos gastar mais com a justiça, nós precisamos de mais magistrados, precisamos que o paradigma que está na Constituição do funcionamento dos tribunais seja aplicado, mas precisamos que a Constituição também funcione. Quando há violações, sobretudo da parte do Estado, das regras fundamentais da nossa organização, que haja uma entidade que o diga. Isso é fundamental.

São os tais custos da democracia.

São custos da democracia. Tal como você não faz democracia sem partidos, também você não consegue uma cultura constitucional das pessoas que invocam ‘eu pago os meus impostos, mas eu tenho os meus direitos e exijo os meus direitos’, como o americano faz. Mas como é que eu sei quais são os meus direitos se eu não conheço a Constituição, se eu não tenho uma cultura constitucional, ou mesmo que conheça, se eu não tenho um tribunal que decida. Um exemplo: a propósito da taxa ecológica, existe pendente um processo de declaração de inconstitucionalidade que está no STJ sem dia de sair, porque não há prazos estabelecidos. Então surge a crispação entre os municípios e o poder central. O governo a dizer que ele está certo e os municípios a dizerem que não. Uma decisão do TC acabaria com essa crispação, porque diria, ‘meus senhores, o que diz a Constituição é isto’. E acabaria essa crispação e ganharíamos todos.

Como vê a relação dos três Presidentes da Segunda República com a Constituição de Cabo Verde?

Nitidamente o Dr. Jorge Carlos Fonseca é muito mais um presidente da Constituição do que os outros. Nitidamente, não tenho dúvidas nenhumas a esse respeito. Ele fez campanha com isso e penso que uma das razões por que ele foi eleito foi porque ele se declarou um presidente da Constituição. O Dr. António Mascarenhas Monteiro também foi importante, porque foi o primeiro presidente no âmbito da Constituição. Não creio que o Dr. Mascarenhas Monteiro tenha feito nada de grave contra a Constituição. Agora, que o actual presidente é mais proactivo para a Constituição, não tenho dúvidas. Pedro Pires, não ele directamente, mas as pessoas da campanha dele, diziam que ele não precisava da Constituição. Portanto, ele não deu muito valor à Constituição.

Em que momentos os três Presidentes marcaram pela positiva ou pela negativa na defesa da Constituição?

Mascarenhas Monteiro, como disse, não houve nenhum momento em que ele tivesse estado contra a Constituição. O momento inicial da sua relação com a Constituição não foi bom. Todos se lembrarão que ele hesitou em promulgar a própria Constituição embora estivesse obrigado a isso e fez uma declaração de alguma forma de discordância com o sistema de governo estabelecido, porque ele entendia que os poderes presidenciais estavam reduzidos. Esse momento inicial não foi bom, mas depois Mascarenhas Monteiro cumpriu a sujeição à Constituição. É claro que ele não foi um presidente proactivo a favor da Constituição, nada disso. Pedro Pires teve um momento muito infeliz quando acabou por promulgar uma legislação que reconhecia que podia ser inconstitucional, mas por razões de ordem política promulgou a lei que depois o TC veio a declarar inconstitucional. Eu acho que foi um momento infelicíssimo para qualquer Presidente da República, porque uma das funções principais do PR é defender a Constituição. Pedro Pires não é um homem da Constituição. Ele não se revê na nossa Constituição, isso é claro. Ele não deu valor à Constituição e a prova disso é que por razões de ordem política aceitou que se violasse a Constituição, quando ele é o primeiro guardião da Constituição. Não dá valor à Constituição, nunca deu e não conta dar. É por isso que ele é contra o Tribunal Constitucional, porque acha que não é necessário garantir a Constituição. Para quê? Para ele não é muito importante. O actual PR tem sido um presidente pró-Constituição, já vetou diplomas com fundamento na inconstitucionalidade, na forma de ver dele. Eu penso que tem sido em todos os momentos, nas suas intervenções, um defensor da Constituição. Ainda recentemente sobre a questão dos símbolos nacionais ele voltou a repetir que não há democracia fora da Constituição. Eu estou plenamente satisfeito com a forma como ele se tem posicionado como um promotor da Constituição.

Como decorreu o processo da aprovação da Constituição de 1992?  
    
Foi um processo bonito, muita gente participou. Foi um projecto que foi amplamente divulgado na sociedade, foi debatido no Parlamento artigo a artigo; passamos muitos dias a debater até ser aprovado. Infelizmente o PAICV não participou nessa votação, saiu. Mas foi um processo muito bonito do nosso ponto de vista, tanto assim é que temos hoje uma Constituição consensual, toda a gente se revê nela. Eu acho que um dos elementos que mais credibilidade dá ao nosso país é termos essa Constituição.

Quais são as grandes virtudes e fraquezas da Constituição de 1992?

A grande virtude da nossa Constituição é a sua flexibilidade. Penso que não sendo uma Constituição pequena é, na sua dimensão, adequada às necessidades que nós tínhamos nessa altura. Estávamos a sair de um regime de partido único e era necessário dizer coisas que poderiam ficar apenas na lei, mas que se calhar foi melhor ter na Constituição, porque dá uma consistência maior, não pode ser alterada do ‘pé para a mão’. Se nós não tivéssemos posto os símbolos da República na Constituição, penso que seriam mudados em 2001 por uma maioria conjuntural. Portanto, esta é a sua força, é a sua capacidade de ter congregado um conjunto de valores que hoje são consensuais. Eu penso que o ponto fraco é ainda não termos um Tribunal Constitucional; é um ponto fraco, porque o TC está previsto na Constituição e não se está a implementar a Constituição. E de uma forma quase impune, porque desde 1999 estamos a lutar para que haja um Tribunal Constitucional e não estamos a conseguir. Outros órgãos constitucionais só recentemente foram implementados, mas há alguns que também ainda não estão. Há coisas no domínio da justiça que seriam importantes para os cidadãos como os tribunais de pequenas causas, os mecanismos expeditos para defender os direitos dos cidadãos, que estão previstos no sector da justiça e que não estão a ser implementados. A culpa não é da Constituição, mas da sua implementação. Aí a responsabilidade é constitucional; se houvesse um Tribunal Constitucional e os cidadãos já tivessem adquirido uma cultura constitucional como a que existe, por exemplo, nos Estados Unidos, eu penso que já teria havido acções no tribunal contra o governo, contra a Assembleia Nacional, para que o TC os obrigasse a regular um conjunto de matérias. Mas eu penso que nós temos um excelente texto e haja vontade política de implementar aquilo que falta materializar na Constituição e teremos, de facto, uma democracia mais perfeita do que temos hoje.

É tido hoje como um dos pais da democracia cabo-verdiana e da Constituição. Como pensa que será julgado pela história?

Bom, primeiro não me considero pai da Constituição, nem da democracia. Nunca disse isso. Fui o rosto para no fundo corporizar milhares de outros rostos. O advento da democracia nos anos 90 é um produto colectivo, de muita gente que participou e tem muito a dizer. Isso foi decisivo. Eu fui o rosto a corporizar esses rostos por vontade deles. Com o meu julgamento da história não estou muito preocupado. Quero ser uma pessoa tranquila, feliz. Tenho procurado ao longo da minha vida ser um bom cidadão, ser honesto, sério, trabalhador e servir o meu país naquilo que estiver ao meu alcance. A história há-de me julgar mas não estou preocupado com isso.

terça, 30 setembro 2014 00:00

*Título PG

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