sábado, 18 de outubro de 2014

Portugal: O MILAGRE DAS ROSAS



Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

Aproxima-se o fim deste sombrio ciclo político. Com a apresentação do Orçamento Geral do Estado, o Governo entrou em "modo eleitoral", prometendo a reposição das pensões, a devolução de um quinto dos cortes dos salários dos funcionários públicos - em 2015 - e anunciando que, em 2016, a sobretaxa do IRS poderá ser devolvida aos contribuintes se o Governo for muito bem-sucedido no combate à evasão fiscal. Invoca-se a reforma do IRS e fala-se dos "impostos verdes"... Mas, de facto, a carga fiscal aumenta embora os impostos diretos não sofram agravamento e, pelo lado da despesa, consegue-se até uma relativa melhoria de algumas remunerações que as taxas e os impostos indiretos (tabaco, bebidas, imóveis) se encarregarão de consumir. Por esta altura, o Governo já tem bons motivos para estar grato ao Tribunal Constitucional: à boleia do acórdão que tão injustamente denunciou, foi concebido um orçamento que é um prodígio de cosmética, um exercício de malabarismo "produzido" com a ambição de conjugar o agrado dos credores - inquietos perante a modesta atualização do salário mínimo nacional! - com algum apaziguamento, ainda que ilusório, dos cidadãos contribuintes. É contudo claro que o Orçamento não conseguiu o milagre da multiplicação dos pães nem conseguiu sequer, à maneira da rainha Santa Isabel, transformar em rosas o pão que amassou!

O quarto orçamento que a maioria PSD/CDS se prepara para aprovar na Assembleia da República é coerente com as políticas preconizadas nos três orçamentos anteriores. O Governo mantém fidelidade cega às doutrinas da austeridade que condenaram a economia europeia à estagnação e que mergulharam os povos num ciclo vicioso de pobreza e endividamento. À oposição, depois da vitória expressiva de António Costa nas eleições primárias do PS, cabe agora construir a alternativa política à destruição do emprego e da economia que apenas contribuiu para degradar as condições de vida dos cidadãos e para agravar a dívida do Estado. A construção da alternativa requer, antes de mais, a reintrodução na vida política de uma questão central, deliberadamente ignorada pela atual maioria ou então marginalizada com inaceitável displicência: a reforma do Estado e do sistema político, matéria sobre a qual o vice-primeiro-ministro apenas nos legou um modesto "guião", parcial e lacunoso, longamente esperado e bem depressa esquecido.

É por isso importante assinalar as contribuições que a sociedade civil, apesar do ambiente adverso, tem conseguido submeter a discussão no espaço público. É o caso dos estudos e debates que a Associação Nacional de Freguesias vem promovendo em todo o país sobre a nossa democracia local, mobilizando autarcas, técnicos e centros de investigação universitária, como o NEDAL - Núcleo de Estudos da Administração Local da Universidade do Minho. Em artigo de opinião publicado esta semana, António Cândido Oliveira - diretor daquele centro, que tem dedicado grande parte da sua vida universitária às problemáticas jurídicas e cívicas da democracia local - denuncia o "desfasamento entre a Constituição e a realidade" que, em jeito de desabafo, descreve desta forma: "Temos o paradoxo de uma Constituição que, ao mesmo tempo que ordena a criação de regiões administrativas, introduziu em 1998 um mecanismo de criação das mesmas que as inviabiliza" ("A organização territorial do Estado: um problema em aberto - "Público", 14/10/2014). O mecanismo a que se refere é o referendo à instituição concreta das regiões administrativas, inserido num preceito com redação tão obscura que todos os constitucionalistas, ainda que divergindo sobre qual a interpretação mais adequada, nele reconhecem uma genuína finalidade: tornar praticamente impossível a criação das regiões!

A construção da alternativa política passa também por aqui: pela abertura aos contributos dos cidadãos e pela rejeição dos vícios centralistas que resistem à concretização dos compromissos constitucionais.

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