Tornou-se
normal que o cidadão comum não possa ousar exigir saúde ou sequer dignidade na
doença; tornou-se usual o desastre, e inesperado seria que algo funcionasse bem
quando os protagonistas deste filme de terror se mantêm.
Tiago Pinheiro* –
Esquerda.net
O
caos instalado nos serviços de Urgência preenche os noticiários e indigna o
cidadão comum; inflamam-se redes sociais, multiplicam-se relatos trágicos em
salas de espera, exorta-se a revolta contra uma política que envergonha que
neste sistema nacional conste sequer a palavra saúde.
Após
anos de repetições trágicas desta calamidade, a anormalidade é considerar toda
esta triste recorrência uma anormalidade. Tornou-se normal que o cidadão comum
não possa ousar exigir saúde ou sequer dignidade na doença; tornou-se usual o
desastre, e inesperado seria que algo funcionasse bem quando os protagonistas
deste filme de terror se mantêm: um ministro empenhado na destruição do SNS,
administrações hospitalares desinteressadas de tudo o que não rime com lucro e
direções clínicas e de enfermagem preocupadas somente com as aparências para as
já típicas visitas ministeriais, reveladoras que afinal tudo estava bem (nem
que para tal se escondam doentes, até ao dia anterior empilhados sem
dignidade).
Explicar
o inexplicável torna-se um entretenimento; consola os apoiantes deste governo
(afinal Paulo não é um dos seus, mas não mais faz que dar a cara à política
destruidora desta coligação assassina do nosso País) enquanto anuncia
pomposamente a culpa do fortuito e do acaso.
Sabemos
hoje, que anos seguidos de sobrelotação do Hospital Fernando da Fonseca são
somente resultado de um défice de pequenas reparações que serão levadas a cabo.
Quiçá, com (mais) uma pintura aqui e acolá, e algumas camas mais de
internamento encerradas, se possa finalmente resolver problemas menores e
ocasionais (afinal só acontecem 364 dos 365 dias do ano) como utentes
internados em salas de espera, cidadãos a arrastaram-se por corredores onde
encontram no chão o único espaço disponível para se deitarem, enfermeiros a
cuidarem de 10, 15 ou 20 doentes, médicos a desdobrarem-se entre internamentos,
admissões, consultas e tudo o mais imaginável. Onde estão os fundos de
acreditação que pomposamente avaliam as instituições?
Sabemos
também que para esta altura de crise foram admitidos mais 300 profissionais. O
esforço é admirável, ainda que não pareça suficiente para suprir os 10.000
enfermeiros que deixaram o país nos últimos 6 anos, muitos deles abandonando os
hospitais hoje em crise, substituídos ocasionalmente por colegas sem
experiência e com vínculos precários ou temporários.
Houve
igualmente um reforço da linha Saúde 24, sobretudo no tempo de espera, agravado
há mais de 1 ano, depois do despedimento de quase metade dos seus
comunicadores. Será porventura uma altura interessante para refletir na
diferença de qualidade de um serviço que poderia ser uma solução e não mais um
nicho de negócio. Anormal seria dar valor em vez de perseguir os enfermeiros
que outrora fizeram deste um serviço útil.
Tomamos
pulso à estonteante taxa de vacinação sazonal da Gripe; o pulso perde-se no
entanto quando falamos de todos os que deixam de tomar a sua medicação
habitual, todos os que falham refeições, todos os que não tem uma habitação que
lhes garanta salubridade. Perde-se o pulso a Portugal, sob a surdina de
gargalhada da austeridade.
Continua
a naufragar este barco, com capitães à distância e marinheiros do costume; a
surpresa é a própria surpresa que todos fingem, ano após ano. A surpresa no
utente que falece por esperar 6h, quando não deveria esperar mais de 1h; o
espanto nas 22h ou 24h de espera para quem não tem alternativa; o inconformismo
pelas condições indignas em que pessoas são supostamente cuidadas.
Explica-se
o anormal, esquecendo-se a explicação da normalidade. Chamar normal ao que hoje
se vive assusta, afinal ainda se idealiza um hospital como um porto seguro. Mas
este porto afunda, lentamente pelos bravos profissionais que fazem da sua
rotina tirar baldes de agua de uma inundação causada pelos que se fingem
surpreendidos.
Enfermeiros
humilhados na sua profissão, desvalorizados no seu trabalho árduo, entregues a
si próprios, fazendo da luta pela sua sobrevivência a luta da sobrevivência de
um sistema, abandonados pelas suas chefias, empenhadas somente em permanecer
nas graças das administrações,
Como
eles, médicos, técnicos de diagnósticos, auxiliares, administrativos, todos
votados a esta normalidade, que lhes dá vontade de rir quando classificada de
anormal, vontade de chorar quando mergulhados nela a troco de quase nada, pouco
mais que o seu orgulho e brio.
Anormais
seriam palavras acertadas de um Ministro que em nada acerta, de uma política
que tudo destrói. Anormal seria que um País onde a justiça não se ganha, mas se
compra, trouxesse ao banco dos réus as culpas da destruição do SNS, outrora
garante da segurança e dignidade de cada um. Anormal seria que se tomassem as
medidas certas, investindo numa duplicação ou triplicação dos recursos humanos,
na qualificação dos espaços e no investimento de alternativas.
Anormal
seria que por um ano que fosse a discussão sobrevivesse ao Inverno, afinal as
vítimas que tombam nos corredores dos hospitais são vítimas da inércia de todos
nós.
*Enfermeiro
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