Como
surgiu, dos Indignados, o “Podemos”. Por que está este prestes a derrubar
partidos tradicionais, que se auto-sabotaram. Que transformações políticas e
econômicas propõe
Vicenç
Navarro – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho, em 3 fevereiro 2015
Uma
imenso mar humano povoou as ruas de Madri no último sábado. Centenas de
milhares de pessoas manifestaram-se, atendendo a um chamado do
partido-movimento Podemos, criado há menos de um ano. Esperançosas após a
vitória eleitoral do Syriza, na Grécia, elas sinalizaram que a Europa vai
continuar tremendo, nos próximos meses. Que já não será fácil manter “ajustes
fiscais” [“austeridade”, na Europa] que cortam direitos e mantêm as rendas
financeiras. Que a suposta “racionalidade econômica” não poderá mais ser usada
como pretexto para afastar a sociedade das decisões e transferi-las a
“especialistas”. Que pode estar com os dias contados o sistema em que dois
partidos — rivais na disputa pelo Estado, mas cada vez mais semelhantes nas
políticas que adotam — alternam-se eternamente no poder.
Que
ventos produzem o furacão espanhol? Até há um ano, o sistema bipartidário
instituído há quatro décadas parecia inabalável. PP (centro-direita) e PSOE
(ex-social-democrata) estavam acomodados, com diferenças mínimas de tom, ao
mesmo projeto que resultou — na Espanha e na maior parte do mundo — num aumento
brutal das desigualdades sociais. Um partido ligado à esquerda história
(“Izquierda Unida”) cumpria um previsível papel de coadjuvante.
Três
fatores parecem ter sacudido este ambiente de pasmaceira. No texto abaixo, Vicenç
Navarro, co-autor do programa econômico do Podemos, explica em detalhes, e em
seu complexo contexto histórico, quais são. Os partidos tradicionais
auto-sabotaram-se, por julgarem que, à falta de alternativas, a população se
acomodaria mais uma vez a uma democracia reduzida a teatro. A difusão de novas
formas, desierarquizadas, de relações sociais, tornou grotesco o controle das
instituições por um punhado de “líderes” partidários — hoje conhecidos na
Espanha como “a casta”. Por fim, o próprio Podemos teve sabedoria para
converter a energia rebelde dos Indignados de 2011 num projeto de
transformações que dialoga de igual para igual com as maiorias — ao invés de
auto-distanciar-se delas por meio de jargões e métodos de “direção”
anacrônicos.
Assim
como o Syriza, o Podemos viverá oportunidades e desafios imensos, nos próximos
meses. Ainda no primeiro semestre, disputará eleições municipais. A formação de
um novo governo, por meio de um pleito antecipado, pode ocorrer ainda em 2015.
Sobreviverá à necessidade de encontrar saídas para a crise — e aos riscos de
ser cooptado pelo sistema que quer transformar? Navarro parece dizer que a
resposta está em aberto. “É o fim de um período, sem que saibamos o que virá
depois”, diz ele, referindo-se a Gramsci. Quando o futuro é incerto, cada ato e
atitude são importantes. Vale conhecer o que está em jogo na Espanha e na
Europa, neste exato momento (A.M.)
O ARTIGO
Vicenç
Navarro - Tradução: Inês Castilho
Alguma
coisa acontece na Espanha. Um partido fundado há apenas um ano, o Podemos, com
um programa claramente de esquerda, poderia ganhar a maioria no Parlamento
espanhol, se as eleições fossem hoje. Após a vitória do Syriza nas eleições
gregas de 25 de janeiro, tem-se especulado sobre a possibilidade do Podemos alcançar
feito semelhante nas eleições parlamentares da Espanha no final deste ano. Mas,
o que está conduzindo o partido ao sucesso?
O
apoio ao Podemos está intrinsecamente ligado às políticas impostas pelo governo
conservador do Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy. Essas políticas
incluíram os maiores cortes em gastos sociais públicos (desmantelando o
subfinanciado Estado de bem-estar social espanhol) desde que a democracia foi
estabelecida na Espanha, em 1978, e as mais duras reformas trabalhistas fixadas
no mesmo período, as quais deterioraram substancialmente as condições do
mercado de trabalho. Os salários baixaram 10% desde a Grande Recessão iniciada
em 2007, e o desemprego alcançou um recorde histórico de 26% (52% entre os
jovens). O percentual de trabalho temporário e precário aumentou, tornando-se a
maioria dos novos contratos no mercado de trabalho (mais de 52% da totalidade
dos contratos); 66% dos desempregados não têm nenhuma forma de seguro
desemprego ou assistência pública.
Essas
medidas criaram um enorme problema de falta de demanda interna, importante
causa da recessão duradoura. Houve apenas um recente crescimento muito
limitado, devido principalmente à queda dos preços do petróleo, a uma
desvalorização do euro e ao compromisso, pelo Banco Central Europeu (BCE), de
comprar títulos públicos. O governo espanhol não teve nada a ver com esses
fatos, embora reivindique a limitada recuperação como resultado de suas
políticas.
As políticas
atuais foram promovidas pela União Europeia por meio do Conselho Europeu, da
Comissão Europeia e do BCE, e pelo Fundo Monetário Internacional. Foram
realizadas na Espanha com apoio e estímulo do capital financeiro, das
principais corporações e seu instrumento político, o Partido Popular. A direita
espanhola conseguiu, possivelmente, o que sempre quis: a redução dos salários e
a asfixia da proteção social, com o esfacelamento do estado de bem-estar. Essas
políticas são aquilo que os participantes da última reunião do G20 na Austrália
apresentaram como estratégia a ser seguida por todos os países, elegendo a
Espanha como país modelo.
Por
que razão os cortes foram feitos?
A
redução dos salários e do número de pessoas que recebem salários, assim como a
redução dos gastos públicos, resultaram num enorme declínio da demanda
interna e, consequentemente, do crescimento econômico. A queda dos salários
significou aumento do endividamento das famílias e das pequenas e médias
empresas. A dívida aumentou enormemente. Isso significa que também as
transações bancárias aumentaram enormemente (a Espanha tem um dos maiores
setores bancários na Europa, proporcionalmente três vezes maior que o dos
Estados Unidos). Mas a baixa rentabilidade da economia produtiva significou um
grande aumento dos Investimentos bancários especulativos, causando enormes
bolhas, das quais a mais importante foi a bolha imobiliária.
Quando
a bolha ainda estava inchando, um sentimento de euforia dominava oestablishment político.
Até mesmo o governo do líder socialista, José Luis R. Zapatero, sentia que, em
tempos de crescimento tão exuberante, os impostos deviam ser reduzidos – seu
slogan então era que “reduzir os impostos devia ser um objetivo da esquerda”.
Reduziu enormemente os tributos, em especial sobre ganhos de capital e rendas
elevadas. E em 2007, quando a bolha explodiu, surgiu um grande buraco nas
receitas do Estado: 27 bilhões de euros. De acordo com economistas do
departamento de estatística do Ministério das Finanças, 70% desse buraco era
devido aos cortes de impostos, e apenas 30% à queda da atividade econômica no
início da Grande Recessão.
Foi
assim que começaram os cortes – sob o falso argumento de que era preciso
enfrentar as medidas de austeridade porque o país estava gastando muito. Na
realidade, quando a crise começou, o Estado espanhol tinha superávit. Na
verdade, o gasto público da Espanha é muito baixo: muito menor do que exigiria
o seu nível de desenvolvimento econômico. Os cortes demonstram a natureza
política dessas intervenções.
Zapatero
congelou as aposentadorias públicas para economizar 1,5 bilhão de euros,
quando poderia ter obtido 2,5 bilhões recuperando os impostos sobre a
propriedade, que havia abolido; revertendo a redução dos impostos sobre herança
(2,3 bilhões); ou revertendo a diminuição dos impostos de indivíduos com
rendimento anual de 120 mil euros (2,2 bilhões). Esses cortes foram
mais tarde ampliados por Rajoy, que cortou 6 bilhões do Serviço Nacional de
Saúde, argumentando, como dissera antes Zapatero, que “não havia alternativa” —
a frase mais frequentemente usada na narrativa oficial.
Contudo,
havia alternativas. Ele poderia ter revertido a redução de impostos sobre o
capital para grandes corporações, que havia aprovado, obtendo 5,5 bilhões. De
fato, escrevi, junto com Juan Torres e Alberto Garzón, um livro a esse respeito
intitulado Hay Alternativas: Propuestas para Crear Empleo y Bienestar
Social em España. O
livro demonstrou, com números claros e convincentes, que havia na verdade
outras opções às políticas impostas. Tornou-se um best-seller na
Espanha e foi largamente utilizado pelo movimento dos Indignados.
O
movimento dos Indignados
O
corte dos gastos públicos e as três reformas do mercado de trabalho
realizadas primeiro pelo governo socialista (PSOE) e depois pelo governo
conservador (PP), despertaram a ira de muitos cidadãos, já que nenhuma
dessas medidas havia recebido um mandato popular genuíno. Nenhuma dessas
políticas foi mencionada no programa eleitoral dos partidos governantes. Em
resposta, o movimento Indignados surgiu e espalhou-se rapidamente por todo o
país. Seus slogans, tais como “A classe política não nos representa”,
tornaram-se largamente populares. Em consequência, as instituições começaram a
perder legitimidade, enquanto o Estado respondia tentando reprimir o movimento.
Contudo, isso não deteve os Indignados: muitos de seus líderes eram jovens e
portanto profundamente afetados pela crise.
O
movimento reclamava uma segunda transição, pedindo o fim do regime de 1978 (o
sistema político estabelecido quando terminou a ditadura) e a elaboração de uma
nova ordem democrática, explicando a necessidade de substituir as instituições
representativas existentes por outras, complementadas por novas formas de
participação democrática tais como referendos e/ou assembleias populares. O
objetivo era estabelecer um sistema democrático autêntico, com formas de
participação direta dos cidadãos tais como referendos, acrescidas de formas
indiretas tais como a democracia representativa, de modo a garantir que os
partidos políticos fossem muito mais democráticos do que são hoje.
Os
Indignados tiveram um impacto enorme, sendo seu primeiro passo um protesto
contra o slogan “Não há alternativas”. De fato, a liderança do
movimento exibiu nosso livro, Há Alternativas, diante da polícia, que
tentava controlar a manifestação. A fotografia de milhares de pessoas mostrando
o livro foi amplamente distribuída dentro do movimento e publicada pela
imprensa. Seu alvo principal era, essencialmente, destacar que havia, sim,
alternativas, e questionar a legitimidade do Estado, que impunha políticas para
as quais não tinha mandato popular.
O
novo partido político: Podemos
Os
Indignados tornaram-se conscientes de que, paralelamente aos protestos, tinham
também de intervir na arena política – e foi assim, essencialmente, que o
Podemos começou. Os líderes do Podemos surgiram do grupo de pessoas que
desempenharam um papel de liderança no movimento. Alguns são membros do jovem
corpo docente do Departamento de Ciências Políticas e Sociais na maior
universidade pública da Espanha, Complutense. Muitos haviam sido ativistas nos
movimentos de juventude do Partido Comunista Espanhol.
Independentemente
de sua origem, todos sentiam que a raiz do problema era o controle do Estado
por uma classe de políticos sustentados principalmente pelos maiores partidos –
o partido conservador-liberal (PP) e o socialista (PSOE) – que se relacionavam
intimamente e estavam vinculados às principais corporações financeiras e
bancárias que corromperam as instituições do Estado. Eles clamavam pelo
estabelecimento de um Estado democrático e uma Europa democrática – “uma Europa
do povo, não a Europa dos banqueiros”.
Eles
participaram das eleições para o Parlamento Europeu em 2014 e tiveram muito
mais votos que esperavam. Em seguida, e mais importante, pesquisas revelaram
crescimento substancial de seu apoio popular. A ponto de se tornar claro, ao
final de 2014, que o Podemos poderia chegar ao governo – uma situação que seus
criadores nunca haviam pensado possível em tão pouco tempo. A mensagem do
partido, “Vote contra a casta. Jogue-os todos fora”, ressoou profundamente
entre o eleitorado. Parece claro que a maioria da população está farta do establishment político
e mediático e voltou-se para o Podemos como alternativa.
No
entanto, a esta altura ainda faltava ao partido uma estrutura claramente
definida. Isso impôs a necessidade urgente de desenvolver uma organização
partidária, baseada num modelo de assembleia e a partir de uma base proposta
pela liderança. Para preparar este programa, pediram a mim e a Juan Torres
(co-autor de Hay Alternativas) que formulássemos um esboço do
programa econômico que um governo do Podemos deveria implementar, se eleito.
Este esboço seria a base para uma vasta discussão no interior do partido. O
documento recebeu um título inicial autoexplicativo: “A necessidade de
democratizar a Economia para acabar com a crise e ampliar Justiça Social,
Bem-estar e Qualidade de Vida – Uma proposta para abrir um debate e resolver os
problemas da economia espanhola”. Foi amplamente distribuído pelo Podemos, com
novo nome: “Um projeto econômico para pessoas” (Un proyecto económico para
la gente). Teve enorme impacto.
A
apresentação da proposta, pelo porta-voz do Podemos, Pablo Iglesias, junto
conosco, como autores, tornou-se um grande acontecimento na Espanha. A
hostilidade da velha mídia e dos ornais econômicos, assim como dos intelectuais
e porta-vozes dos grandes partidos governistas (PP e PSOE) produziu alguns
ataques furiosos ao documento e a seus autores. Na Europa, o presidente do
banco central alemão (Bundesbank) sustentou que as propostas expressas no texto
causariam prejuízos às economias da Espanha e da Europa. Em paralelo a estas
respostas negativas sem precedentes, no entanto, houve ampla aceitação das
pessoas comuns, a ponto de alterar a agenda do debate econômico e desafiar a
ideologia que o impregnava.
Nosso
documento não é um orçamento para o futuro governo do Podemos, mas traça as
linhas estratégicas a se4 seguidas. A análise das causas da crise está focada
no enorme crescimento da desigualdade, responsável pelas crises financeira,
econômica e política. Coloca no centro da análise o conflito do capital (sob a
hegemonia do setor financeiro) contra o trabalho. Ele levou a um enorme
declínio da demanda doméstica, causada pela redução real dos salários, aumento
do desemprego e cortes nas despesas públicas. Voltadas a reverter este
crescimento da desigualdade, as propostas, portanto, sugerem ampliar a demanda
doméstica (elevando os salários e o emprego) e expandindo os gastos e
investimentos públicos (em particular, os relacionados à infraestrutura social).
Sublinha-se
também a necessidade de expandir os bancos públicos, como forma de oferecer
crédito a famílias e a pequenas e médias empresas. Propõe-se a redução da
jornada de trabalho para 35 horas e a idade de aposentadoria, dos 67 anos
atuais para 65 – o que reverteria posições aprovadas pelo PP e PSOE. O impacto
do programa fortaleceria o trabalho às custas do capital. Além disso,
defende-se a clara necessidade de corrigir desigualdades de gênero, inclusive
como forma de ampliar o emprego. E demonstrou que todas estas propostas
poderiam ser sustentadas por meio de uma Reforma Tributária e da redução das
fraudes fiscais.
Que
explica o sucesso do Podemos?
É
fácil responder a pergunta. Há enorme ira popular diante do que o Podemos chama
dela casta. O termo inclui as elites governantes no establishment político,
que desenvolveram cumplicidade aberta com as corporações financeiras e
não-financeiras que dominam as instituições e a mídia. O apelo para “jogá-los
todos fora” desperta apoio geral entre a maioria do povo espanhol.
Além
disso, o Podemos foge dos jargões, usa linguagem comum, redefine luta de
classes como o conflito entre os que estão no topo e todos os demais. É uma
narrativa que mobiliza uma base de apoio ampla e diversa. Além disso, o partido
tornou central, em sua estratégia, a luta pela democracia – e a redefiniu para
incluir distintas formas de participação, como referendos (definidos como el
derecho a decidir), além das formas tradicionais de representação. É por
seu compromisso democrático que aceitou o direito a autodeterminação das
diferentes nações que exitem na Espanha, rompendo com a visão que esta seria um
Estado uninacional.
A
compreensão da Espanha como um Estado “plurinacional” foi uma exigência de
todos os partidos de esquerda (inclusive o PSOE), mas foi abandonada durante a
transição para a democracia pelo Partido Socialista, por pressões do rei
(apontado por Franco) e do exército. A ampla reivindicação popular dos catalães
pelo direito à auto-determinação (não confundir com independência: 82% apoiam a
primeira; apenas 33%, a segunda) criou enorme tensão entre o governo central e
o tornou altamente impopular.
O
sucesso do Podemos tornou-se uma grande ameça ao establishment espanhol
(e europeu). Hoje, as elites financeira, econômica, política e midiática na
Espanha estão na defensiva e em pânico. Aprovaram leis que tornam mais dura a
repressão. Os dirigentes dos grandes bancos estão particularmente preocupados.
O presidente do Santander, que morreu em setembro passado, anunciou pouco antes
de falecer que estava extremamente preocupado, frisando que o Podemos e a
Catalunha representavam, em sua opinião, grandes ameaças à Espanha – a sua
Espanha, é claro. E ele tinha rezão. O futuro agora está aberto. Como disse
Gramsci certa vez, é o fim de um período, sem que tenhamos visão clara sobre
como sera o próximo. A Europa e a Espanha estão fechando uma era. Resta saber
como será a próxima.
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