sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

OS PASSOS DISCRETOS DA TIRANIA?



Ricardo Cabral – Público, opinião

“I never expect to see a perfect work from imperfect man. The result of the deliberations of all collective bodies must necessarily be a compound, as well of the errors and prejudices, as of the good sense and wisdom, of the individuals of whom they are composed.” Alexander Hamilton

 “Se eu estivesse errado, bastaria um!”, Albert Einstein, em resposta ao livro alemão, de 1931, “100 autores contra Einstein”.

Alexander Hamilton, um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos, um dos génios por detrás da Constituição dos Estados Unidos e posteriormente estadista, ficaria certamente chocado com o Estado da União Europeia e, em particular, da União Económica e Monetária (i.e., da zona euro).

A forma como a zona euro foi sendo construída desde os anos 90 – desenhada por tecnocratas não eleitos, em reuniões com documentos de trabalho confidenciais como, por exemplo, os elaborados pela Comissão Monetária – deu os resultados que estão à vista de todos.

Em anos recentes, os processos que condicionam os resultados a que se refere Hamilton na citação acima, em vez de melhorarem, deterioraram-se. Por exemplo, deixaram de ser feitos referendos aos Tratados Europeus que promovem mais “integração” europeia.

Ao invés, os tecnocratas, as instituições de governo da União Europeia e os próprios governos dos países membros, têm recorrido, de forma crescente, a Acordos Intergovernamentais que, não prevendo cláusulas de saída, muito dificilmente são revogáveis. O país que subscreve um acordo, não consegue posteriormente sair dele, relembrando a letra da música Hotel Califórnia.

Mas não foram só os tecnocratas e os governos que falharam. Os representantes do povo – os membros do Parlamento Europeu – que deveriam vigiar e questionar o poder executivo europeu – as instituições de governo europeias – também parecem ter ficado, no seu conjunto, muito aquém das suas responsabilidades.

Por exemplo, a última legislatura do Parlamento Europeu que concluiu o seu mandato em Maio de 2014 operou, colectivamente, uma das maiores transferências de poder dos países membros para o poder executivo central da União Europeia, aprovando, em alguns casos, autênticos cheques em branco a favor das instituições de governo da União Europeia. A legislação aprovada inclui, por exemplo, o mecanismo único de supervisão bancária, o mecanismo único de resolução bancária, vigilância apertada a países em dificuldades, o “Two Pack” e o ”Six Pack”. O Parlamento Europeu fê-lo, é certo, com o acordo tácito dos governos nacionais.

A legislação que suporta os dois mecanismos de supervisão e resolução bancária foi aprovada no Parlamento Europeu com muito elevadas votações, a níveis dignos de regimes totalitários (87%~85%87%)[1] – estou consciente que a frase anterior é chocante, mas a intenção é fazer pensar – não obstante a falta de detalhes e os insuficientes controlos instituídos sobre os poderes ora concedidos.

Os resultados desta nova legislação são muito significativos: antes da legislação e dos acordos sobre supervisão e resolução bancária, o BCE já controlava a política monetária e a emissão de moeda nos países membros. Têm sido vários os exemplos sobre como esse poder sobre a moeda pode condicionar as democracias europeias, constituindo as recentes decisões em relação à Grécia apenas mais um caso.

Agora, após a completa implementação desta legislação, o BCE passará a controlar os bancos com cerca de 85% dos activos bancários da zona euro (que representam cerca de 23 biliões de euros de activos financeiros, ou seja, cerca de 240% do PIB da zona euro). Um poder desmedido em economia de mercado.

Dir-se-á que votações do Parlamento Europeu com maiorias de 87% indicam que os parlamentares estão certos, com certeza. Mas a citação de Einstein acima lembra-nos que 87% é uma percentagem demasiado elevada para nos dar a confiança de que, de facto, esses membros do Parlamento Europeu têm razão. Essa legislação promove uma gigantesca transferência de poder económico e tem implicações que, para a maioria das pessoas, não são claras. Não é natural que essa legislação tenha sido suportada por 87% de votos dos representantes dos povos europeus. Maiorias dessa ordem de grandeza raramente se verificam nos parlamentos nacionais de países democráticos, e são surpreendentes em questões tão polémicas e tão importantes. Tais maiorias são, ao invés, um sinal que algo não vai bem no processo de escrutínio de novas propostas de legislação pelo Parlamento Europeu.

Após essa legislação, com a política monetária e a banca (crédito bancário e sector financeiro) sob o firme controlo do independente e tecnocrático BCE, com o Pacto Orçamental, que poder económico resta às democracias europeias?

Um resultado dessa nova legislação europeia já foi sentido pelo novo governo da Grécia, ao procurar nomear alguém da respectiva confiança para um banco privado (“Banco Nacional da Grécia”). Se o governo grego excedeu os seus poderes com essa decisão, os interessados (accionistas) podem recorrer à justiça grega e inclusive à justiça europeia para fazer valer os seus direitos.

Mas o BCE fez já saber que a legislação europeia permite que o BCE vete qualquer alteração à gestão dos bancos de um país membro. Mais, o BCE determinou que todos os gestores de topo de bancos supervisionados pelo BCE terão de ser previamente entrevistados pelo BCE.

Será que o BCE irá aceitar gestores que sejam críticos ou que não partilhem das suas ideias?

Este caminho afasta-nos da democracia…

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