segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Portugal: CAVAQUICES



Rui Sá* – Jornal de Notícias, opinião

O meu amigo Eduardo, uma das pessoas que conheço que melhor pensam, associa a essa característica uma grande desorganização. O que o faz provocar, sem qualquer maldade, algumas confusões, que a sogra, apesar do enorme carinho que nutre por ele, apelida de "eduardices"...

É neste neologismo que me baseio para o título desta crónica. Sendo certo que, apesar de ambos provocarem confusões, não atribuo a Cavaco Silva nenhuma das características do meu amigo Eduardo que acima referi! E, confesso-o, também não nutro pelo presidente da República o carinho que o Eduardo, embevecido, recebe da sua sogra...

Cavaco Silva terminará o seu mandato como o político que mais tempo esteve à frente nos cargos mais importantes para o destino do país no pós-25 de Abril. Mais precisamente, 20 anos em 40 anos de democracia! Por isso sabemos bem que é um dos principais responsáveis pelo estado em que o país se encontra, agora que se tornou consensual que a sua atuação como primeiro-ministro, com a destruição de grande parte do setor produtivo, foi um dos maiores erros que o país cometeu.

Vem isto a propósito da rábula do disse-não-disse de Cavaco Silva sobre o BES. Antes de a abordar importa fazer um ponto prévio. É evidente que os principais responsáveis pela situação do BES são os seus administradores, com Ricardo Salgado à cabeça e tudo o que se possa passar ao lado do processo, embora relacionado com o mesmo, não nos pode distrair deste facto. Parece-me também evidente que a divulgação, por Ricardo Salgado, das datas das diferentes reuniões que teve com os personagens do costume não é mais do que uma mensagem: "Atenção que eu sei muitas coisas e, se não me derem a mão, eu não cairei só!...".

Mas esta constatação não impede que se analise o papel de Cavaco no processo. E, naturalmente, os deputados que integram a Comissão de Inquérito ao BES têm a obrigação de, perante a confirmação de audiências de Ricardo Salgado com o presidente da República para lhe expor a situação do Grupo BES, procurar ouvi-lo sobre a matéria.

Cavaco arma a confusão, dizendo que não se pronunciou sobre o BES mas sim sobre o Banco de Portugal (BdP). Tive o cuidado de ouvir a gravação da sua intervenção na Coreia do Sul, no passado dia 21 de julho e que transcrevo na íntegra: "O BdP desde há algum tempo tem vindo a tomar medidas para isolar o banco, a parte financeira, das dificuldades financeiras da zona não financeira do grupo. O BdP tem sido perentório, categórico, a afirmar que os portugueses podem confiar no BES, dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa. E eu, de acordo com a informação que tenho do próprio BdP, constato que a atuação do banco e do governador tem sido muito, muito, correta".

De facto, Cavaco atribui o voto de confiança ao BES às informações que recebe do BdP. Mas será que um presidente se limita a receber informações dos organismos oficiais? Será que a batelada de assessores não recolhe informações adicionais nem estuda os dossiês de forma a que o presidente, com base em diversas fontes, interprete, com mais conhecimento de causa, o que se passa? E, ainda mais importante, será que nas audiências que Cavaco concedeu a Ricardo Salgado (segundo este a 31 de março e a 6 de maio) não lhe deram mais informações? É que, segundo o próprio Salgado, as suas audiências terão tido efeito, a julgar pelo facto de a ministra das Finanças ter escrito ao governador do Banco de Portugal informando que "responsáveis do grupo" já a tinham alertado para "eventuais riscos para a estabilidade financeira" do BES! Ou seja, bem pode Cavaco tentar virar o bico ao prego mas a sua intervenção sobre o BES foi lamentável e terá contribuído para perdas de muitos investidores.

Diz Cavaco que as audiências são reservadas. Compreendo que considere que Belém é um confessionário. Mas quando é o "pecador" que refere, publicamente, as linhas mestras da "confissão", até o padre fica liberto do pacto de silêncio. Muito mais o presidente da República, que fala e diz o que não deve e se procura calar quando tem explicações a dar... 

*Engenheiro

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