À
frente, a famosa Torre de Londres. Ao fundo, a reluzente porém
obscura “City”, núcléo da rede internacional de “centros financeiros offshore”
Como
o sistema financeiro internacional converteu capital britânica no centro global
de reciclagem para riqueza de políticos inescrupulosos, ditadores e crime
organizado
George
Monbiot - Outras Palavras - Tradução: Vila Vudu
A
conta não fecha. Quase todos os dias, jornais e televisões inglesas estão
repletos de histórias que cheiram a corrupção. Contudo, no ranking de
corrupção da ONG “Transparência Internacional”, a Grã-Bretanha ocupa o 14º
lugar entre 177 nações (1) – significando que estaria entre as nações mais bem
geridas da Terra. Ou os 13 países que vêm antes da Grã-Bretanha são
espetacularmente corruptos, ou há algo errado com esse ranking da
“Transparência Internacional”.
Sim,
o problema é o índice. As definições de “corrupção” de que se serve são as mais
estreitas e seletivas. Nos países ricos, práticas comuns que sem dúvida
poderiam ser consideradas corruptas são simplesmente excluídas; já práticas
comuns em países pobres são enfatizadas.
Esta
semana foi publicado um livro bastante inovador, editado por David Whyte: How
Corrupt Is Britain? [Quão Corrupta é a Grã-Bretanha?] (2).
Deveria ser lida por todos aqueles que acham que Grã-Bretanha merece a posição
em que aparece no ranking da “Transparência Internacional”.
Existiria
ainda um setor bancário comercial na Grã-Bretanha, não fosse a corrupção? Pense
na lista dos escândalos: pensões subfaturadas, fraudes hipotecárias, o embuste
do seguro de proteção de pagamentos, a manipulação da taxa interbancária Libor,
as operações com informações privilegiadas e tantos outros. Depois, pergunte-se
se espoliar as pessoas é uma aberração – ou o próprio modelo de negócio.
Nenhum
dirigente de banco foi indiciado, sequer desqualificado ou demitido por
práticas que contribuíram para desencadear a crise financeira: a legislação que
os teria coibido ou enquadrado em crimes já havia sido paulatinamente
esvaziada, antes, por sucessivos governos.
Um
ex-ministro do atual governo britânico dirigia o banco HSBC (2) quando este
praticava sistematicamente crimes de evasão fiscal (3) e lavagem de dinheiro do
narcotráfico, além de garantir serviços a bancos da Arábia Saudita e
Bangladesh ligados ao financiamento do terrorismo (4). Ao invés de processar o
banco, o diretor da Controladoria Fiscal do Reino Unido passou a trabalhar para
ele, ao se aposentar (5).
A
City de Londres, que opera com o apoio dos territórios britânicos de além-mar e
postos avançados da Coroa, é líder mundial dos paraísos fiscais, controlando
24% de todos os serviços financeiros (6) oferecidos offshore.
A
cidade oferece ao capital global um sofisticado regime de sigilo, dando
assistência não apenas a sonegadores de impostos, mas também a contrabandistas,
fugitivos de sanções e lavadores de dinheiro. Como disse a juíza de instrução
francesa Eva Joly, ao queixar-se que a City “nunca forneceu sequer uma ínfima
evidência útil a qualquer magistrado estrangeiro” (7).
Reino
Unido, Suíça, Cingapura, Luxemburgo e Alemanha estão todos entre os países
menos corruptos na lista da Transparência Internacional. Mas figuram também na
lista da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) como administradores dos
piores regimes sigilosos de investimento e paraísos fiscais (8). Por alguma
estranha razão, nada disso é levado em conta para definir o ranking da ONG
Transparência Internacional.
A
Iniciativa de Financiamento Privado (Private Finance Initiative) tem sido usada
por sucessivos governos britânicos para iludir os cidadãos quanto à extensão
dos seus empréstimos, enquanto canalizam dinheiro público para corporações
privadas. Envolta em segredo, recheada de propinas ocultas (9), a IFP tem
fisgado hospitais e escolas sempre com dívidas impagáveis, enquanto impede que
a população controle os serviços públicos.
Espiões
do Estado lançam-se à vigilância (10) em massa, ao mesmo tempo em que a polícia
trabalha servindo-se de identidades de crianças mortas, mente em tribunais para
fornecer provas falsas e incita crianças ao ativismo extremista, além de
infiltrar-se em grupos pacíficos, tentando destruí-los (11). As forças
policiais já mentiram sobre o desastre de Hillsborough (12); já protegeram
pedófilos ativos (13) –inclusive Jimmy Savile e, como hoje se afirma, toda
uma gama de dirigentes políticos suspeitos também do assassinato de crianças.
Savile foi protegido também pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health
Service) e pela BBC – que demitiu a maioria dos que tentaram expô-lo (14) e
promoveu os que tentaram perpetuar o ocultamento dos fatos.
Há
o problema de intocado sistema de financiamento político, que permite a compra
dos partidos (15) pelos mais ricos. Há o escândalo das escutas telefônicas e
dos jornais que subornam policiais; da privatização dos Correios britânicos,
o Royal Mail (16), vendido a preços insignificantes; o esquema da
“porta giratória”, que permite a empresários e empregados de grandes empresas,
depois de eleitos, ficar em posição de redigir leis que defendem seus próprios
interesses ou dos respectivos patrões; o assalto à seguridade social e aos
serviços prisionais, por empresas privadas terceirizadas; a fixação, por
empresas, do preço da energia; o roubo diário perpetrado pela indústria
farmacêutica, e outras tantas dúzias de casos semelhantes. Nada disso é
corrupção? Ou são operações ‘sofisticadas’ demais para serem expostas sob o seu
verdadeiro nome, “corrupção”?
Entre
as fontes usadas pela Transparência Internacional para produzir seu ranking estão
o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial. Confiar no Banco Mundial para
aferir corrupção é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos
humanos. Orientado pelo princípio um dólar-um voto, controlado pelas nações
ricas e atuando nas nações pobres, o Banco Mundial financiou centenas de
elefantes brancos que enriqueceram enormemente as elites mais corruptas e
beneficiaram capitais estrangeiros (17), ao mesmo tempo em que expulsava
pessoas das próprias terras e deixava países afogados em dívidas impagáveis.
Para espanto geral, a definição do Banco Mundial para a corrupção é tão
limitada que não considera esse tipo de prática.
E
o Fórum Econômico Mundial estabelece sua escala de corrupção a partir de uma
pesquisa que consulta executivos mundiais (18) — precisamente eles, cujas
empresas são beneficiárias diretas do tipo de práticas que estou listando nesse
artigo. As perguntas se limitam ao pagamento de propinas e à aquisição corrupta
de fundos públicos por interesses privados (19), excluindo o tipo de corrupção
que prevalece nas nações ricas. Quando entrevista cidadãos comuns, a
Transparência Internacional segue a mesma linha: a maior parte das perguntas
específicas concerne ao pagamento de propinas (20).
Quão
corrupta é a Grã Bretanha? Tão estreitas concepções de corrupção são parte de
uma longa tradição de retratá-la como algo confinado a países fracos, que
precisam ser salvos por “reformas” impostas pelos poderes coloniais e, mais
recentemente, organismos tais como Banco Mundial e FMI. Essas “reformas”
significam austeridade, privatização, terceirização e desregulamentação. Elas
tendem a sugar dinheiro das mãos dos pobres para as mãos das oligarquias
nacionais e globais.
Para
organizações como o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, há pouca
diferença entre o interesse público e os interesses das corporações globais. O
que pode parecer corrupção de qualquer outra perspectiva é visto por eles como
fundamentos econômicos. O poder das finanças globais e a imensa riqueza da
elite global estão fundadas em corrupção, e os beneficiários têm interesse em
enquadrar a questão para desculpar-se. Sim, muitos países pobres sofrem o flagelo
do tipo de corrupção que é o pagamento de propinas a servidores públicos. Mas o
problemas que atormentam a Inglaterra são mais profundos. Quando o sistema já
pertence à elite, propinas são supérfluas.
NOTAS
1. https://www.transparency.
- 2. http://www.plutobooks.com/ - 3. http://www.theguardian.com/ - 4. http://www.hsgac.senate.
5. http://www.theguardian.com/ - 6. John Christensen, 2015, in
David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
7.
Nicholas Shaxson, 2011. Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the
World. Random House, London. http://
8. http://www. - 9. http://www.theguardian.com/ - 10. http://www.theguardian.
11. http://www.theguardian. - 12.
Sheila Coleman, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto
Press, London.
16. http://www.theguardian. - 17. http://www. - 18. http://www3.weforum.org/
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